Os “índios” do velho continente.

Meu amigo e ex-professor Rodrigo Montoya passou dois meses aqui em S. Paulo, hospedado conosco  enquanto dava um curso para o grupo Diversitas, da USP, coordenado pela prof. Zilda Yokoy.

Rodrigo trabalha em novo livro, no qual retoma temas que lhe são caros, como a questão étnica no Perú, a questão dos estados plurinacionais, que a Bolívia recentemente consagrou em sua nova constituição. Conversamos bastante a respeito durante esse tempo, inclusive sobre as peculiaridades brasileiras e a intersecção das questões raça e classe nessas sociedades.

A formação dos estados nacionais, façanha das nascentes burguesias do final da Idade Média e do Renascimento, está em crise também em seu berço original, a Europa. Principalmente na Espanha, onde as autonomias da Catalunha, Valência, País Basco e Galícia contestam com cada vez maior veemência o conceito de estado nacional espanhol (e o municipalismo extremado que ganhou muitos pontos nas últimas eleições reforça essa tendência). Além da Espanha, a Bélgica, onde o impasse entre valões e flamengos resulta em enormes dificuldades para a formação de um governo nacional, e mais recentemente no Reino Unido, onde a Escócia retomou seu ímpeto independentista, o questionamento dos estados nacionais (um país, uma bandeira, um hino e um idioma – antes, também de forma candente, também uma religião) está cada vez mais presente.

Na França, um dos primeiros a alcançar tal condição, as reivindicações dos bretões, normandos, bascos e occitanos pareciam relegadas a um segundo plano, essas reivindicações voltam a agitar o panorama político, ainda que sem a envergadura do que acontece na Espanha. Mesmo a Alemanha (que foi um dos últimos a se conformar como estado-nação, já no século XIX), o que parecia ser uma tendência de reforço, com a anexação (chamada de reunificação) da RDA pela RFA continua mostrando sinais de atrito.

Na América Latina o problema é particularmente grave nos países nos quais, antes da chegada dos conquistadores europeus, existiam culturas muito fortes, já bem prestes a se tornarem estados nacionais, particularmente nos Andes, com o Império Inca. Na Mesoamérica e no México, por sua vez, a crise profunda que se abatia sobre os astecas não eliminou o problema. Os zapatistas mostram que o problema continua presente, embora o estado nacional mexicano seja bem forte.

Na Bolívia o questionamento do estado-nação unificado vem sendo tratado de forma bem mais criativa, com o reconhecimento explícito da plurinacionalidade no estado boliviano. E no Perú, como Rodrigo Montoya vem mostrando, a crise é longa e profunda, e com muitas implicações, como também no Equador.

Em seu último post no Taquiprati, meu amigo Bessa retoma, como sempre de modo alegre (que recobre de humor questões seríssimas), esse problema. Mencionado a questão occitana, não deixa de lembrar o estatus de dominadas que sofrem nossas populações indígenas.

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A primeira vez que ouvi falar na língua occitana foi em 1972 quando estava exilado em Paris. Uma amiga francesa, Paulette Delpont, me contou que era nessa lingua que seu avô ensinava os mais jovens a fabricar aqueles foles antigos que servem para reavivar o fogo na lareira. O vovô morreu no Roussillon, sul da França, onde exercia seu oficio de artesão. Mas a língua d´oc resiste e ainda hoje há quem arrisque a vida por ela. Para defendê-la, o fundador do jornal occitano La Setmana, David Grosclaude, iniciou no final de maio greve de fome contra a política do estado francês que discrimina uma língua tão próxima ao português.

Reside justamente na afinidade das duas línguas, que são as “últimas flores do Lácio”, o motivo do encanto que o occitano desperta em nós, falantes de português. Se o vovô do Roussillon me perguntasse: – Que fas dins la vida? – eu responderia: – Soi estudiant. É que para falar occitano – eu brincava – basta suprimir a vogal final das palavras em português: degra(u), mai(s), plan(o), catolic(o) sac(o), vent(o), pont(e) e por aí vai. Qualquer criança brasileira entende o chamado de mãe occitana: – mon filh – mesmo que não seja a “voz materna” no “rude e doloroso idioma” cantado por Camões.

Língua d´Oc

Afinal, que língua é essa, cujo falante tem de fechar a boca para reivindicar o direito de usá-la? mapa 6 O occitano, conhecido como provençal ou língua d´oc é uma língua neolatina falada na Occitânia, uma nação sem estado, no sul da França, que inclui territórios do Languedoc-Roussillon, Provença, Gasconha, Auvérnia, Limusine e Definado, além de alguns vales alpinos da Itália e o Vale do Aran, na Catalunha. Lá se encontram sítios arqueológicos e históricos, ruínas romanas, coliseus, aquedutos, anfiteatros, mosteiros, igrejas, abadias, além do patrimônio mais importante que documentou tudo a seu redor: a língua d´oc.

No século IX – garantem os estudiosos – surgem os primeiros documentos escritos em occitano com o objetivo de converter seus falantes ao catolicismo, qualquer semelhança com o que fizeram os missionários na América com os índios não é mera coincidência. Eram traduções do latim de hinos, poesias, contos religiosos, biografias de santos. Conserva-se ainda hoje o manuscrito com a versão feita no séc. XI do Evangelho de São João, além de peças de teatro e da poesia dos trovadores do sec. XII e da literatura jurídica, filológica e científica a partir dos séculos XIV e XV.

Mas o uso oficial do occitano parecia ter seus dias contados. Com a Revolução Francesa, o Abbé Grégoire, padre e político, traçou um mapa dos costumes e das línguas faladas na França, a partir de questionários aplicados em 1790, que confirmaram o que já constava na Enciclopédia publicada alguns anos antes: o francês falado sobretudo em Paris era considerado língua estrangeira no interior, onde predominavam línguas vernaculares denominadas depreciativamente de patuá.

Definido pela Enciclopédia como “linguagem corrompida falada em quase todas as províncias”, o patuá, na realidade, era “o nome dado às línguas dos povos vencidos” como mais tarde advertiria Jean Jaurés. Foi com esse discurso de intolerância em relação a essas línguas que o abade Grégoire fundamentou a elaboração do “Relatório sobre a necessidade e os meios de erradicar o patuá e universalizar o uso da língua francesa”.

A compreensão de que as línguas constituem um dos alicerces de ordenamento social nas práticas administrativas do Estado justificou a imposição do idioma francês como um dos fundamentos ideológicos da unidade nacional com a consequente intransigência na repressão às demais línguas.

O selvagem da França

Parler francais propre O projeto político defendido pelo abade Grégoire queria extinguir as línguas usadas no meio rural, incluindo aquelas faladas pelos escravos por cuja liberdade – é verdade – ele lutou, desde que os libertos falassem francês, que para ele era “a língua da liberdade”. Como deputado na Constituinte, declarou que essa era a melhor forma de eliminar as superstições – assim ele chamava os conhecimentos tradicionais transmitidos oralmente em línguas vernáculas. Sua proposta de “criar um povo” e de “dissolver todos os cidadãos na massa nacional” passava pela universalização da língua francesa, estabelecendo a relação entre cidadania e a língua oficial. Essa foi a política de línguas do Estado francês.

Uma estátua do Abbé Grégoire foi inaugurada recentemente no coração de Montpellier em comemoração à libertação dos escravos durante a Revolução Francesa, o que é uma afronta equivalente a erguer um monumento aos bandeirantes ou uma estátua de Cabral dentro de uma aldeia indígena, conforme observação de Mathias Gibert, que discute o papel intolerante do abade no artigo Uma França Selvagem: sobre a ‘colonização interna’.

A consequência desse modelo político que interfere no destino das línguas regionais é contestada pelo bispo de Burgos, Pedro Luis Blanco, na sua “Resposta Pacífica de un Español”, de 1798. “Nos tratan como índios” – escreveu. O bispo reconhecia que o occitano e outras línguas minorizadas recebiam o tratamento compatível com o modelo colonial hispânico que defendia a erradicação da diversidade linguística.

Embora a administração colonial, por necessidade, tivesse usado as línguas gerais indígenas, o que significou a extinção das línguas minoritárias, as constituintes das repúblicas latinoamericanas retomaram o modelo francês, associando a cidadania ao domínio da língua de Estado.

Efetivamente, na França, os povos de línguas minorizadas foram submetidos a um processo de “colonização interna”, estudado pelo linguista e historiador Robert Lafont, professor da Universidade de Montpellier, especialista em literatura occitana. Para ele, as minorias que vivem em território controlado pelo estado francês foram colonizadas, seguindo o modelo do colonialismo externo. “O camponês francês é o selvagem do interior”, para usar expressão de Michel de Certeau citada por Mathias Gibert.

Lenga d´amor

langedoc Apesar disso, a língua e a cultura da Occitânia conquistaram um lugar na literatura e no cinema. História de Adrien de Jean-Pierre Denis, que tive a sorte de ver em 1981, é todo falado na língua d´Oc e legendado em francês. Conta a história de um camponês no início do séc. XX, as migrações, o êxodo rural, a cidade, a greve dos ferroviários. A escolha da língua foi determinada – segundo o diretor – como forma de registrar que em 1905 ela era falada pelos camponenses no cotidiano do campo e dos povoados.

A trajetória da língua e da cultura occitana pode ser vista também no documentário Lenga d´amor (2013), todo ele falado em língua d´Oc, escrito e dirigido por Patrick Lavaud. Ele registra as narrativas orais, o conto, a criação literária, a toponímia, o bilinguismo e discute o papel do ensino da língua e de seu futuro, a partir de suas lembranças da infância na fazenda da família, na região do Périgord.

A Occitania, assim como o mundo indígena, resistiu ao colonialismo interno, que proibiu a escolarização das crianças na língua d´Oc. A língua foi enterrada, mas como uma semente renasceu. Hoje, as estimativas indicam a existência de 4 milhões de falantes, cujas conquistas de escola bilingue se encontram ameaçadas. Por isso, o conselheiro regional da Aquitânia, David Grosclaude, iniciou no dia 27 de maio uma greve de fome. Os jornais franceses de circulação nacional nada noticiaram, mas nas redes sociais milhares de pessoas manifestaram imediatamente seu apoio.

No dia 3 de junho a greve vitoriosa foi interrompida, com a assinatura de um documento pelos ministros da Educação e da Cultura, que garantiram a criação de uma Secretaria Pública da Língua Occitana e os recursos para seu funcionamento. Daqui, do Diário do Amazonas, saudamos o fole do vovô do Roussillon que continua assoprando as brasas da tradição, iluminando o falar occitano. A simpatia não é só dos falantes de português, mas também dos índios no Brasil. Línguas indígenas e língua d´Oc: le même combat!
P.S. Agradeço as valiosas indicações de Mathias Gibert no seu artigo “Une France sauvage: autour de la ‘colonisation intérieure” e outras sugeridas em troca de e-mails.

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