“Penso que não cegamos. Penso que estamos cegos. Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem.”
Quantos cegos são necessários para fazer uma cegueira?
José Saramago
Vivemos um momento muito estranho no Brasil, com essa valorização da traição, consagrada no estatuto da delação premiada, ou até premiadíssima, como foi o caso da polêmica dupla caipira, que acabou sendo detonada. Aliás, para disfarçar a brutalidade da palavra delação, a legislação fala de “colaboração espontânea” de um criminoso que indica outros possíveis corréus.
O delator foi sempre execrado pela sociedade porque, na verdade, fere o sentimento necessário da organização social que é a confiança da cidadania de que as leis serão cumpridas, de modo objetivo e impessoal, pelos aparelhos do Estado. A delação transmuda a lei impessoal no instrumento de uma ação ad hominem, o delator contra o delatado.
A figura do delator provoca repulsa. De Judas Iscariotes a Joaquim Silvério dos Reis, a figura do delator é associada à ignomínia e à venalidade. Judas, por 30 dinheiros, e Silvério dos Reis pelo perdão de uma dívida de mais de 172 contos de réis, uma fortuna. Mesmo personagens como Calabar, cuja biografia vem sendo objeto de revisão, não escapa a essa percepção de repulsa: o delator é traidor por interesse próprio.
Da mesma maneira, durante a ditadura militar, os “presos arrependidos” que confessavam ganhavam o perdão e, em alguns casos, passavam a trabalhar para a própria repressão. O romance “Cabo de Guerra”, da Ivone Benedetti, retrata essa situação.
Todas essas situações trazem um traço comum: o delator é sempre “premiado”.
Ainda que delações sejam fenômeno histórico recorrente desde a antiguidade, são poucos e excepcionais os momentos em que a delação foi estimulada, seja como forma de garantir o domínio religioso, como na Inquisição, seja em função de interesses políticos, travestidos em interesses do Estado ou da “Segurança Nacional”. São exemplos históricos recentes os expurgos estalinistas da década de 1930 e o macarthismo.
Esses dois últimos exemplos são tragicamente demonstrativos de momentos em que a delação não apenas era “premiada”, como estimulada. E parece que estamos em um momento desses no Brasil.
Existe uma milenar instituição, entretanto, que trata a auto delação como um dos componentes de todo seu aparato teológico. É a igreja católica. A auto delação, apelidada de confissão, é um dos requisitos para alcançar a “graça” da absolvição e a entrada no paraíso. A relação do crente com a divindade é mediada pelo sacerdote, que consagra a hóstia e “perdoa” os pecados reconhecidos com contrição, o arrependimento e a penitência: as obrigações determinadas pelo sacerdote para “reparar” o pecado. As denominações protestantes se rebelaram contra a intermediação do sacerdote e colocaram a confissão como um diálogo entre o fiel e a divindade. Todas, entretanto, colocam a “reparação” do pecado como uma exigência para a absolvição, além do sincero arrependimento.
A Inquisição levou ao extremo essas injunções: os pecados eram crimes não apenas contra a divindade, como também contra a instituição muito terrena e poderosa que era a própria igreja, e o Estado que a assumia como religião oficial. As técnicas e métodos inquisitoriais tinham, entre outras características, a “certeza” do inquisidor de que o pecador tinha algo para confessar, e que não era questão de perguntar ao acusado o que se queria saber, e sim que o fiel confessasse e abjurasse seus pecados, que sabia quais eram.
Brincadeira, os inquisidores sabiam muito bem o que o acusado devia confessar: não apenas os pecados em atos contra as determinações e instituições da igreja, como também os associados que o interrogado teve no cometimento dos atos nefandos. A confissão, portanto, se caracterizava claramente como auto delação e delação de terceiros.
Para que o interrogado “confessasse”, os mais variados estímulos eram usados para convencê-lo. Desde a pura e simples prisão arbitrária, seguida da exibição dos instrumentos de tormento, e subindo até a submissão do pecador (quem não peca?) aos sucessivos e cada vez mais violentos “instrumentos de persuasão”. Tudo, da prisão aos tormentos, hoje amplamente caracterizados como tortura, “justificados” como sofrimento necessário da carne para que se alcançasse a libertação espiritual.
E bastava a confissão. Não eram necessárias “provas” – que poderiam, é claro, corroborar, mas não eram necessárias para justificar a punição/penitência. Vestes rituais, confirmação de hábitos (banhos, tidos como parte do judaísmo), restrições alimentares não eram apenas “indícios”, como também provas. Assim como os recibos de pedágio de autos provando que funcionários do Instituto Lula foram ao Guarujá, o que por si só era incriminador.
A autoconfissão e a delação eram redimidas pelas penitências, que podiam incluir o confisco dos bens do pecador/herege ou sua “entrega ao braço laico” para que fosse executado, pois a dita santa madre não matava ninguém, só seu ‘braço”.
Esse arcabouço teológico e legal, infelizmente, subsiste até hoje nesse famoso instituto da delação premiada, de certa forma também “instituídos” pela Inquisição.
Dante Alighieri e sua obra A Divina Comédia foram colocados no Index Proibitorum – os livros que os católicos estavam interditados de ler – por razões bem claras para quem o lê. Hoje pode ser até divertido observar as categorias de “pecadores” colocados no Inferno por Dante, segundo o tipo e o grau de suas ofensas. No meio do Inferno está a “Cidade de Dite”, a fortaleza que separa os pecados cometidos sem intenção (pagãos, que estão no limbo, o vestíbulo do Inferno, luxúria, ira, gula, os pródigos e avarentos). A partir do sexto círculo, os pecadores são o que pecam com dolo, ou determinação.
Lá estão, no último círculo, os traidores, mergulhados de várias formas no eternamente gelado lago Cocite. Os que traíram seus hóspedes, seus partidos, seus parentes e seus reis e mestres. Não sobra ninguém. Os corruptos estão no oitavo círculo.
Dante não prevê nenhuma instância de redenção, e essa foi uma das razões pelas quais a Inquisição o colocou no Index. O “perdão”, obtido pela confissão (auto delação, delação, arrependimento e penitência) era parte da teologia católica, e estava ausente do livro. Mas o castigo previsto pelos vários tipos de “pecadores” continuava simbolicamente vigente. Frio eterno nos lagos congelados para os traidores. Só que negar o efeito da confissão e contrição, que levam ao perdão e à remissão, constituía sacrilégio e a inclusão no index.
A inclusão da penitência, antecedidos pela confissão/delação e arrependimento, tornou o arcabouço católico-inquisitorial mais sólido.
Outro aspecto constituinte da delação é que ela está associada sempre seja a situações de oportunismo financeiro, político ou pessoal, ou como solução para que haja alívio de situações penosas impostas no futuro ao “delator”. Neste caso, é claro, a delação é fruto pura e simplesmente da tortura mental ou psicológica imposta, que obriga o delator a vislumbrar, como alívio para o sofrimento, tornar-se “voluntário” para delatar.
Em outros casos, a delação é puro cálculo antecipado dos benefícios dela decorrentes. O delator tem alguma “moeda” para negociar, delatando em troca da entrega dessa moeda e alguns outros balangandãs. Vão-se os anéis e ficam os dedos…
Mas a delação, agora, anda aparecendo como um “meio” de facilitar a descoberta e punição de casos de corrupção “que sem isso não seriam descobertos e punidos”.
Ora, ora.
Existe confissão maior de incapacidade de investigação que esse recurso à delação? O Estado dispõe de inúmeros e poderosos instrumentos de rastrear toda a vida dos cidadãos. Uma das mais importantes discussões atuais é precisamente os limites dessa intromissão do Estado em nossas vidas. Os bancos devem informar todas as transações que ultrapassem a ínfima quantia de R$ 5.000,00. Uma das discussões mais fortes da atualidade é precisamente o como e a quanto pode-se limitar essa fuxicagem do Estado (e dos hackers, que ganham dinheiro com isso) em nossas vidas.
No entanto, agora, a delação e os delatores passaram a ser as estrelas das investigações. Algo que, em todas as sociedades, sempre foi condenável e vergonhoso, virou, de repente, no Brasil, algo considerado necessário e digno de premiação.
Existe sintoma maior de que vivemos em uma sociedade em desagregação?
No âmbito jurídico moderno, a chamada “prova testemunhal” é muitas vezes descrita como a “prostituta das provas”. Isso decorre, evidentemente, de vários fatores e possibilidades: a testemunha ser coagida de algum modo, seja físico, mental, financeiro ou mesmo com penas (como no caso da “premiação”), a distorcer os fatos sobre os quais supostamente teve conhecimento direto e fatual. Aliás, o Código de Processo Civil coloca diretamente como caso de suspeição o depoimento de testemunhas que tenham interesse direto na apuração dos fatos em julgamento. Só isso bastaria para colocar sob suspeição todas as chamadas delações ou “colaborações premiadas” (esta última é apenas um eufemismo para enfeitar e eliminar a feia palavra delação do procedimento jurídico).
O mesmo problema acontece também com os chamados acordos promovidos entre os réus (e seus advogados) e a (in)justiça criminal que os acolhe, abandonando o rito processual, o direito de defesa e a impessoalidade das leis.
Quando se vê isso usado para perseguições políticas, não há dúvida: voltamos à inquisição, ao “santo” moralismo seletivo.
Quando se prende com o objetivo de forçar o preso a se tornar delator, e espera-se que ele “confesse” quais seus cúmplices em presumidos atos criminosos, voltamos à processualística da Inquisição.
Quando “provas” são aceitas seletivamente, ou recusadas com o pretexto de serem “ideologicamente falsas”, também estamos voltando às práticas instituídas por Torquemada e seus pares.
Quando a ordem dos processos é retardada ou acelerada para coincidir com prazos e interesses externos, estamos vendo uma manipulação interessada e portanto injusta.
Quando a legislação é usada no interesse do Estado ou de seus eventuais ocupantes, e não da defesa dos direitos do réu, presumido inocente, estamos diante da jurisprudência nazista, a que aceita que a lei deve ser aplicada simplesmente porque o poder estatal assim o exige. E a lógica das leis e do processo penal se subvertem completamente.
Infelizmente, esse é o Brasil que se nos apresenta. E trata-se de uma perversão da vida social que, oxalá, não chegue a ser tão perigosa e daninha para a sociedade quanto o foi a ditadura civil-militar de 1964.
Texto importante: erudição necessária para aprofundar temas – entre muitos outros tratados pela mídia como normais, corriqueiros. Felipe valeu!!
Pingback: QUERER DA BOCA PRA FORA E INSTAURAR A CONFUSÃO | Zagaia