“Algumas mortes terão. Paciência” – O Ensandecido parodia o general Curtis LeMay
Uma das coisas que gosto de cultivar, quando possível, é o
que chamo de “cultura inútil”. Ler coisas que não têm nada a ver com os
interesses e necessidades, mas que são divertidas e bem escritas. Informativas.
Coisas que The New Yorker ou a London Review of Books publicam. Enfim,
combustível para o “livre pensar é só pensar”, como dizia o Millor.
Infelizmente estamos vivendo “tempos interessantes”, segundo
os chineses. E um dos fatores mais “interessantes” são os ex-abruptos desse
ensandecido que está no Planalto, como essa claudicante frase que está acima.
Isso me fez lembrar de um personagem que quase “esquentou” a guerra fria, com
suas propostas.
Trata-se do general da força aérea dos EUA Curtis LeMay, com
uma longa trajetória de ordenar bombardeios de alvos civis e forçar os pilotos
dos EUA a voar mais baixo que o originalmente previsto para acertar melhor os
alvos, apesar do evidente aumento de baixas entre eles. A decisão de voar mais
baixo foi o resultado de um relatório então preparado pelo futuro Secretário de
Defesa Robert McNamara, que dizia que voar alto era o resultado de “covardia”
dos pilotos. LeMay ordenou os pilotos a voar baixo e quem abortasse a missão
passaria por corte marcial por covardia…
Depois de comandar bombardeios na Europa, LeMay foi transferido para o Pacífico. Repetiu as táticas e as “aperfeiçoou”. Foi o responsável pelo maior bombardeio convencional da II Guerra Mundial, matando 100.000 civis em uma única noite de bombardeio incendiário sobre Tóquio. Deixou os bombardeios de cidades alemães no chinelo.
LeMay foi o comandante do esquadrão que bombardeou Hiroshima e Nagasaki. “Vai morrer muita gente, mas o que fazer?”
McNamara, que conhecia bem a peça, declarou no documentário A
Névoa da Guerra (The Fog of War), quando fez um mal-ajambrado mea
culpa pela Guerra do Vietnã, que tinha certeza de que, se a guerra fosse ganha
pelos alemães e japoneses, LeMay (e provavelmente ele também) seriam julgados
como criminosos de guerra.
Depois da II Guerra Mundial, e especialmente logo depois que os soviéticos detonaram uma bomba de hidrogênio, mas os EUA ainda tinham uma indisfarçável superioridade atômica, ele passou a defender um “ataque preventivo”, detonando deliberadamente a III Guerra Mundial. O argumento era exatamente similar ao do Bozo:
McNamara, que conhecia bem a peça, declarou no documentário A
Névoa da Guerra (The Fog of War), quando fez um mal-ajambrado mea
culpa pela Guerra do Vietnã, que tinha certeza de que, se a guerra fosse ganha
pelos alemães e japoneses, LeMay (e provavelmente ele também) seriam julgados
como criminosos de guerra.
Depois da II Guerra Mundial, e especialmente logo depois que os soviéticos detonaram uma bomba de hidrogênio, mas os EUA ainda tinham uma indisfarçável superioridade atômica, ele passou a defender um “ataque preventivo”, detonando deliberadamente a III Guerra Mundial. O argumento era exatamente similar ao do Bozo: “Vai morrer muita gente, mas o que fazer?”
Durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, ele defendeu
ardorosamente o ataque nuclear generalizado, não apenas a Cuba, mas à União
Soviética, com o mesmo argumento.
Para culminar a carreira, foi candidato a Vice-Presidente
dos EUA na chapa ultra racista e de direita do George Wallace, em 1968.
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Durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, ele defendeu
ardorosamente o ataque nuclear generalizado, não apenas a Cuba, mas à União
Soviética, com o mesmo argumento.
Para culminar a carreira, foi candidato a Vice-Presidente dos EUA na chapa ultra racista e de direita do George Wallace, em 1968.
Sterling Hayden em “Dr. Fantástico”
LeMay inspirou dois dos personagens do filme do Kubrick “Dr. Fantástico”. O personagem de Sterling Hayden, Brigadeiro Ripper, comandante da base aérea que dá a ordem de ataque, e o General “Buck” Turgidson, interpretado pelo George C. Scott, o comandante da Força Aérea que está adorando a ordem de Ripper. Dois grandes atores em duas grandes interpretações da loucura militar.
George C. Scott, em “Dr. Fantástico”
Como se vê, essa atitude de total falta de empatia e desprezo pelas vidas em função de um “objetivo estratégico” não é estranha ao pensamento militar. O Bozo tem antecessores. E terá sucessores.
Posso dar algumas sugestões adicionais, a partir da
experiência pessoal. Em particular, livros lidos quando era hóspede forçado no
Presídio Tiradentes, durante a ditadura (aquela que o Bozo diz que nunca
existiu).
1 – Em Busca do Tempo Perdido, do Proust. É longo. Mas não sei se dá pra ler ao lado de um banheiro quebrado… Não é deprimente. Ao contrário, tem passagens muito divertidas. O personagem vive isolado na sua cabeça e suas memórias, embora circule bastante….
2 – Ulisses, do Joyce, na tradução do Houaiss. É longo, como todos sabem. Só que é um exercício de determinação e autodisciplina. O senhor embaixador produziu uma tradução de uma chatice pedante incomparável. Mas leva muuuito tempo. Não adianta ter dicionários ao lado, mas analgésicos sim.
3 – O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo. É longo. Delicioso.
Aguenta qualquer tranco.
Por mera coincidência, estou lendo o último volume da trilogia
cromwelliana da Hillary Mantel, The Mirror & the Light. É grande. Não tem
nada de chato. Mas não é tão bom quanto os dois primeiros romances da trilogia.
Quando ao Conde… há edição grátis em francês no Kindle. E uma edição supostamente em português em oferta da qual fujo que nem do coronavírus, publicada pela Martin Claret. Não deve ser impactante, e sim infectante…
A capa e a contracapa de “Maria Altamira”, o novo romance de
Maria José Silveira, transmitem gráfica e metaforicamente o conteúdo do livro
que sai agora em março, editado pela Instante.
Como disse a professora REGINA DELCASTAGNÈ, da Universidade
de Brasília:
“Esse é um livro a ser percorrido ao som de um lamento, um texto que se contorce sobre si e se desloca, nos convidando a ir junto. São muitos trajetos possíveis, sem que se assinale um destino final: da cidade soterrada no Peru dos anos 70 às terras alagadas pela usina Belo Monte no Pará dos dias de hoje; da história de uma vida para sempre quebrada aos sonhos de liberdade e justiça que se renovam sem parar; dos vários sotaques do espanhol latino-americano, que se infiltram na escrita, ao português tão diferente dos diferentes interiores do Brasil, sem esquecer ainda as falas indígenas. São espaços e personagens com os quais nós, leitores/as de literatura, não estamos acostumados/as. Por isso, também, a surpresa da bela narrativa, que nos envolve e, de algum modo, nos responsabiliza. Como podemos desconhecer essas vidas e os tantos mecanismos em ação para destruí-las, como ousamos ignorar esse lamento, esse grito de revolta?”
Essa capa foi criada pela Fabi Yoshikawa. Nas ilustrações, feitas por Renato Hofer , os contornos da América ganham estampas inspiradas em grafismos de povos indígenas. E esse mapa da América do Sul serve como guia para leitoras e leitores acompanharem a trajetória de Alelí e sua filha, Maria Altamira.
O ponto de partida dessa história é a cidade de Yungay, no Peru, que em 1970 foi soterrada por um terremoto. Alelí, então com 16 anos, perdeu pais, irmãos, namorado e a filha de 3 anos. Em choque e sem forças, ela partiu sem rumo, percorrendo vários países da América do Sul até chegar a São Félix do Xingu, no Pará brasileiro.
É no Xingu que ela conhece Manuel Juruna, indígena por quem ela se apaixona e com quem tem uma filha, Maria Altamira.
O livro conta, ao mesmo tempo, a história de Alelí, de Maria e da cidade de Altamira, abordando conflitos como a construção da usina de Belo Monte, as reservas indígenas e o movimento dos sem teto, em São Paulo.
Com esta parte da capa, concebida pela Fabi Yoshikawa e ilustrada pelo Renato Hofer, nós mostramos a região do rio Xingu após a construção da Barragem de Belo Monte, destacando os trechos de vazão reduzida e de terras indígenas. A imagem é mais um apoio para o leitor acompanhar as histórias da cidade de Altamira e de Maria.
Filha de Alelí, criada na cidade de Altamira, Maria vive a
construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ela está ciente de que a obra
destruirá a vida de comunidades ribeirinhas e indígenas nas proximidades do rio
Xingu.
Após um período morando em São Paulo, ela retorna ao Pará em
2015, mas não consegue aceitar com bons olhos a suposta modernidade e o
progresso trazidos pela usina. Só existe a violência, as novas casas tristes
dos ribeirinhos, tão distantes do rio (agora com peixes escassos e doentes) e
os impactos sociais e ambientais nas aldeias indígenas.
Hoje, na FSP, Bruno Molinero publicou a nota sobre acima
sobre “Maria Altamira”, que a Instante lançará agora em março.
Sobre “Maria Altamira”, João Cezar de Castro Rocha escreveu:
“Maria José Silveira ocupa um lugar próprio na literatura
brasileira contemporânea por meio de um corajoso exercício que evoca o
anacronismo deliberado de célebre personagem de Jorge Luis Borges. Isto é, a
autora, entre outros, de A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas (2002) e
Pauliceia de Mil Dentes (2012), combina com agudeza preocupação social e
invenção linguística, olhar atento à história e rigor na construção ficcional.
Além disso, e muito ao contrário de tendências que se tornaram dominantes na
literatura brasileira, Maria José não abre mão de pensar a formação da cultura
brasileira. Melhor: em seus romances, investiga-se sobretudo as origens da
deformação que previne o país de finalmente tornar-se nação.
Neste novo romance, Maria Altamira, o público leitor é
conduzido da década de 1970 aos dias de hoje e transita do Peru ao Pará de Belo
Monte: nessa busca de um tempo que parece perder-se sempre um pouco mais, a
desigualdade e a injustiça social permanecem a paisagem atávica das sociedades
latino-americanas. Eis outro traço singular da imaginação ficcional de Maria
José Silveira: sua escrita pretende ser um mosaico de todo o continente, com
suas múltiplas vozes e tantos dilemas em comum. Maria Altamira representa um
marco importante na obra de uma autora em pleno voo.” JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA -Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Inácio Araújo, crítico de cinema e estimado amigo, publicou dois posts sobre o filme do Clint Eastwood.
Mandei a ele um comentário, que reproduzo abaixo:
O agente do FBI do filme, inspirando a atitude do Dalagnol.
Prezado Inácio,
Fomos assistir hoje o “Richard Jewell”. Tanto por sermos
admiradores do Clint Eastwood, como ator e diretor, como por seus elogios ao
filme.
De fato, um belíssimo espetáculo cinematográfico. Eastwood pega um espetáculo em que um zé ninguém se vê catapultado subitamente à posição de herói, e três dias depois ser enxovalhado e passar por um calvário de quase três meses. E que personagem é o tal Jewell. É o patriotismo mais rastaquera, e uma postura que chega a ser bordeline paranoica e fascistoide. É a “lei e a ordem” praticamente encarnada.
O filme mostra como um sujeito desses subitamente se vê
enredado em uma situação quase insustentável precisamente porque é um defensor
da lei e da ordem.
Mais que um “direitista”, Clint Eastwood é a encarnação de
um extremado individualismo. O indivíduo enfrenta e resolve os problemas com
que se defronta, apelando inclusive para o vigilantismo. O filme vai até uma
posição extrema: não confie em hipótese nenhuma nos agentes do Estado. Quando o
pobre Jewell assume uma posição de querer estar dentro do aparato estatal, se
ferra.
E Clint Eastwood deixa claro: corporações, mídia, polícia
(especialmente a federal….) são simplesmente expressões do big state,
opressoras do indivíduo. A questão não é Jewell ser um loser, e sim como o
Estado o esmaga. Só quando, espicaçado pelo advogado, ele reage como indivíduo
é que consegue sua redenção. É um lapso fugaz de revolta, já que finalmente ele
consegue voltar a ser policial, e pode-se imaginar, pelas cenas do começo do
filme, o quão atrabiliário e violento ele pode ser, na “defesa da lei e da
ordem.”We don’t want mikeymousing around”, é a mensagem do reitor que ele tenta
aplicar literalmente, lá na universidade e que também é o que move suas ações
durante os espetáculos de abertura da Olimpíada. E ele filosofa sobre o
eventual resultado de sua punição, lembrando que outros seguranças, no futuro,
vão sair de perto quando perceberem uma ameaça.
O naturalismo cinematográfico de Eastwood o obriga a mostrar
as contradições da postura individualista: faça o que quiser, mas dentro da lei
e da ordem, mas aguente as consequências, porque isso não é garantia de nada
diante do poder impessoal e atrabiliário do Estado. O advogado se esforça para
lembrar que os agentes “não são o Governo”, apenas uns “miseráveis empregados”,
mas Jewell volta e meia relapsa e se coloca na posição abstrusa de querer ser o
que o está oprimindo.
Fantástica também é a cena final, quando o personagem do
agente do FBI entrega a carta exonerando Jewell das acusações, mas cuspindo
“Acredito firmemente que seu cliente é o culpado”.
Descobrimos, finalmente, pelo menos uma inspiração do
Dalagnol (e do Moro, é claro): “Não tenho provas, mas tenho convicções”.
E é por aí que o filme faz uma intersecção e fecha com o
trumpismo. Acho.
ZORA NEALE HURSTON, que nasceu no dia de hoje, 7 de janeiro,
em 1891, antropóloga e romancista, foi aluna de Franz Boas e pesquisou extensamente
comunidades negras da Florida e das Antilhas. Foi também uma das mais ativas
participantes do Renascimento do Harlem, movimento cultural de valorização da
cultura negra, incluindo literatura, artes plásticas, música e dança.
As monografias de Zora descrevem as especificidades das
comunidades afrodescendentes do sudeste dos EUA, especialmente da Florida. Ela
recuperou depoimentos em gullah, um dialeto do inglês com marcantes influências
de línguas africanas. Seu legado mais importante, entretanto, é o romance Their
Eyes Were Watching God, publicado em 1937, que a colocou entre os
principais autores norte-americanos da época. O livro foi traduzido (ainda não
descobri por quem) e publicado em 2002 pela Record, com o título de “SEUS
OLHOS VIAM DEUS”. Só é encontrado em sebos.
A trajetória de Zora Hurston foi trágica. Depois de
enfrentar as dificuldades acadêmicas para conseguir frequentar Barnard College
e a Columbia (com enorme esforço de Boas) e ficar famosa com a publicação do
romance, foi rejeitada por alguns dos intelectuais mais proeminentes do
Renascimento do Harlem, inclusive Ralph Ellison, autor de “O Homem Invisível”,
publicado pela Marco Zero, que diziam que sua obra “não era suficientemente
militante”.
Em poucos anos Zora Hurston passou de escritora de sucesso a empregada doméstica e morreu paupérrima, em um asilo, em Fort Pierce, na Florida, em 1960. A escritora Alice Walker autora de “A Cor Púrpura” – também publicado pela Marco Zero -, em 1975 conseguiu localizar seu túmulo e escreveu um artigo recuperando sua importância, fazendo que o romance fosse reeditado e traduzido.
O romance de Zora Hurston é fantástico, como literatura,
documento antropológico e, sim, militância. Mostra as divisões que cruzam as
comunidades de afrodescendentes, inclusive em relação à mestiçagem e ao papel
das mulheres. A personagem principal, Janie Crawford, é uma lutadora que passa
por três casamentos, enfrente problemas terríveis e se afirma como mulher.
Curioso é que a cidade onde transcorre a maior parte da ação do romance tem o
mesmo nome da cidade para onde Zora se mudou e cresceu, Eatonville.
Em 2005, a Editora Expressão Popular organizou algumas reuniões com autores e ilustradores para desenvolver o projeto de criação de uma coleção de livros de literatura, alguns voltados para os jovens alunos da grande rede de escolas públicas que funciona nos acampamentos e assentamentos do MST.
Esse aspecto da ação do MST é pouco conhecido e merece ser amplamente divulgado. São cerca de 2.000 escolas públicas, 200.000 assentados com acesso a diferentes níveis de educação, desde a fundamental até cursos de graduação e pós-graduação, oferecidos com universidades parceiras, inclusive internacionais. Os cursos de Medicina, oferecidos em Universidades cubanas e venezuelanas (sim, a devastada Venezuela, tão duramente execrada pelos jornalões oferece bolsas de estudo para jovens brasileiros) são conhecidos, e os médicos atuam em ações de saúde e prevenção em dezenas de acampamento e assentamentos. Conheça algumas dessas ações aqui.
O primeiro dos livros que nascidos dessa iniciativa foi “Um Fantasma Ronda o Acampamento”, (veja na loja da Expressão Popular) da Maria José Silveira e ilustrado pelo arquiteto e ilustrador Marcos Cartum.
Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, em Guararema, SP.
Publicado em 2006 e destinado ao público pré-adolescente, já com capacidade de leitura desenvolvida, o livro aproveita as ideias de aventura e terror para mostrar como jovens “Sem-Terrinhas” descobrem a trama de um fazendeiro e seus capangas para assustar e fazer debandar um acampamento de sem terras recém instalado. Como diz a Fanny Abramovich na apresentação do livro “são as três crianças que descobrem o atrás do apavorante”. E, divertindo-se junto com os adultos, dão o troco na mesma moeda e colocam os facínoras para correr.
No último dia 5 de dezembro, Maria José Silveira foi convidada para ir até a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo, para conversar com as crianças da Ciranda Infantil Saci Pererê e conhecer o projeto que estão desenvolvendo, junto com a Brigada AudioVisual do MST: transformar “Um Fantasma Ronda o Acampamento” em vídeo.
Foi uma maravilha e uma experiência muito gratificante.
A Ciranda Infantil Saci Pererê está instalada na ENFF para proporcionar educação complementar para os filhos dos Brigadistas que trabalham permanentemente no local, assim como o de participantes de cursos, encontros e outras atividades que lá se realizam. “Não podemos deixar que as mães e os pais tenham que deixar os filhos sem cuidados, ou deixar de participar das atividades para cuidar das crianças. Assim, as Cirandas fazem parte tanto das escolas como dos centros de formação do MST por todo o país”, informa Vanessa Souza, uma das educadoras da Ciranda da ENFF.
Maria José na Ciranda Saci Pererê, na ENFF
O projeto de produzir o vídeo surgiu da iniciativa de Révero
Ribeiro, que coordena as atividades de teatro da Escola. “Pensamos primeiro em
fazer uma adaptação teatral do livro, que as crianças adoram. Mas isso evoluiu
para fazermos o vídeo, e a ideia foi aprovada pela coordenação e, com o apoio
da Brigada AudioVisual, iniciamos a produção.”
As crianças aderiram com entusiasmo, decidindo quem
interpretaria os diferentes personagens, preparando as caracterizações. A única
dificuldade foi achar uma barba para quem faria o papel do Velho, um provocador
infiltrado no acampamento. “Foi a única coisa que compramos”, informa Révero. “Todo
o resto foi produzido aqui mesmo. A barraca da “coordenação” do acampamento foi
batizada com um cartaz: Ocupação Gláuber Rocha”.
“Também escolhemos as locações aqui dentro da área da ENFF e
as crianças mobilizaram os pais para as cenas com adultos e para acompanhá-los
nas gravações noturnas”.
A Brigada AudioVisual, que produz materiais para a ENFF e
para o MST em geral, está empenhada em fazer um trabalho com o máximo de
profissionalismo. O vídeo está sendo mixado, com correção de cores, uso de
materiais filmados em outras Ocupações para complementar cenas, e a montagem
final está em curso.
“Pensávamos que o vídeo iria durar uns quinze minutos, mas
acho que vai dar mais de vinte”, comenta Révero. “E acreditávamos que já
estaria pronto, mas é uma trabalheira….”
A previsão é que o vídeo estreie na reunião da Coordenação
Nacional do MST, em janeiro, e a partir daí entre em exibição nos equipamentos
audiovisuais de assentamentos, ocupações e outros centros de formação do MST.
Na visita à escola, assistimos a projeção de um pequeno
trecho (4 minutos), com duas sequências, extraídos do material bruto (sem
finalização ou edição).
Comenta a autora do livro, em sua página do FB: “As crianças
que têm entre 8/dez anos deram vida aos personagens principais, a Brigada do
AudioVisual da Escola filmou e agora o vídeo está sendo montado. Tem coisa mais
bacana? Assisti a uma pequena cena, vivida pelos dois “atores” principais, e
outra ao redor da fogueira, com um grupo da militância, encenando outra cena do
livro. Fiquei emocionada. Eu que não sou de chorar, acho que vou chorar no dia
da estreia.”
O mote da canção do Chico Buarque é o título de um belo e interessante documentário de Marcelo Gomes.
O diretor começa o filme lembrando que, quando criança, foi
a Toritama, cidade do agreste pernambucano, acompanhando o pai, fiscal de
rendas na época. Uma cidadezinha quieta, sonolenta, centro de um povoado de criadores
de gado caprino. O município está na margem esquerda do Capibaribe e faz divisa
com Caruaru.
Quando o do documentarista volta à cidade, quarenta anos
depois, o cenário é completamente diferente. A cidade se tornou a “capital do
jeans” – os outdoors na abertura do filme são fantásticos, todos fotografados
com cara de sul-maravilha – e produz cerca de 20% desse produto. São
aproximadamente 20 milhões de jeans por ano.
Informa o diretor-narrador que praticamente tudo é produzido nas “facções” (os linguistas que expliquem essa modificação do verbo confeccionar), fabriquetas de fundo de cozinha-garagem-sala dos moradores locais que, além do mais, são donos das máquinas de cortar e costurar. Ao que parece algumas máquinas maiores, com as de estampagem “a laser” prestam serviços para outras. Entretanto o que se vê e escuta no filme é o incessante barulho das máquinas de costura e das cortadoras de pano. A cidade trabalha todos os dias, o ano inteiro. Só para na semana do carnaval quando a maioria dos moradores vai para alguma praia. Os domingos são para levar a produção para a feira, onde tudo aquilo se escoa.
Algumas cenas logo no início do filme mostram pessoas transportando montanhas de jeans em motos, bicicletas ou carrinhos de mão. Ao ver aquilo, minha sensação era de que a tela mostrava uma quase obscenidade. Como era possível transportar tamanha carga de pano em motos e bicicletas (os carrinhos ainda eram mais lotados)? Tudo jogado depois nos galpões, misturados com gatos e galinhas domésticos e meninos brincando no meio da confusão.
O documentário mostrava parte do cotidiano de Toritama.
Os entrevistados do filme – homens, mulheres, jovens e
velhos – quase unanimemente declaram que “gostam” do que fazem. Sobretudo,
enfatizam que “controlam seu tempo de trabalho”: quanto mais trabalham mais
ganham.
O controle do tempo de trabalho começa como uma ilusão
típica de uma economia camponesa, autônoma, na qual apenas a natureza pode
impor ritmos, e que leva à ilusão de uma autonomia plena. Mas não é só isso,
como veremos.
Esse “controle do tempo” em Toritama resulta em jornadas de
até dezoito horas de trabalho, incluindo o domingo na feira, para um rendimento
aproximado de R$ 2.000,00, segundo a conta e demonstração de uma entrevistada,
que ganhava dez centavos por cada peça que produzia. A “satisfação” expressada
pelos entrevistados se resumia nessa possibilidade de trabalhar mais e ganhar
mais.
Apenas dois dos entrevistados do filme contestam isso. Um vaqueiro, visto levando seu rebanho de cabras e bodes em busca de pasto. Ele levanta um pano vermelho quando vai atravessar a rodovia, ”onde de vez em quando perde um dos animais”. Este se declara camponês, gostar do que faz e não querer saber dessa história de “ganhar mais dinheiro como esse pessoal das facções que só pensa em ganhar”. Outro, que parece ser trabalhador assalariado, com carteira assinada, reflete que o emprego lhe permite “pensar no futuro” e se aposentar, embora ganhe menos que nas facções.
Um segmento interessante foi quando se entrevistou o dono de
uma loja da cidade, especializada em compra e venda de usados. Nos dias que
antecedem ao carnaval aparece de tudo na loja: geladeiras, liquidificadores,
televisões e também algumas dessas máquinas de trabalho (máquinas e costura e de
corte). Segundo o dono, aquilo tudo é vendido pelo pessoal da cidade para ter
dinheiro para ir para a praia durante o carnaval. Na volta, diz ele, as mesmas
pessoas, em grande medida, “recompram” a prestações quilo que venderam antes.
Na verdade, a loja é um sistema de penhor e microcrédito.
A comercialização das peças não é aprofundada no filme,
apenas com a menção de que na feira é preciso “descarregar tudo”. Não se
informa se há encomendas, como é adquirida a matéria-prima, etc. A feira,
aliás, é impressionante. Nada a ver com as feiras tradicionais já estudadas por
antropólogos.
Em outras palavras, o filme coloca e documenta somente o lado da produção. Ou seja, o trabalho. Que é remunerado por peças, e o documentário não adentra nas etapas prévias da produção (aquisição de matéria-prima, máquinas e equipamentos) e da circulação dos jeans produzidos (presença de atacadistas, encomendas prévias, etc.). Não entra na domesticidade dos moradores da cidade, de suas casas só aparece a face “pública”, voltada ao trabalho, ainda que com a intrusão de galinhas e meninos ranhentos circulando. Menciono isso lembrando que não se trata de um documentário sociológico ou econômico. O documentário está focado naquele momento de trabalho insano dos toritamenses, o que não diminui em nada a beleza do filme.
Mas foram os aspectos sociais, políticos e econômicos do que
é documentado, e que se pode inferir do filme, o que mais chamou minha atenção.
Ainda que os trabalhadores declarem que, em sua maioria, são
os donos das máquinas em que trabalham (adquiridas com economias e poupanças de
outras formas de trabalho, ou talvez a crédito, na compra de usados), o que se
vê na realidade é salário por peças. Eles são donos das máquinas de partes do
processo produtivo, mas o dono das facções é quem recebe a produção e paga os
salários.
No primeiro volume d’O Capital, Marx trata do salário por
peças, comparando-o ao salário por tempo de trabalho.
“Como a qualidade e a intensidade do trabalho são
controladas aqui pela própria forma do salário, [por peças] esta torna grande
parte da supervisão do trabalho supérflua. Ela constitui, por isso, a base
tanto do moderno trabalho domiciliar anteriormente descrito como de um sistema
hierarquicamente organizado de exploração e opressão. […] O salário por peças
facilita (…) a interposição de parasitas entre o capitalista e o trabalhador
assalariado” (Citações extraídas da edição brasileira do livro, da coleção
Pensadores, Ed. Abril, tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe), p. 141).
E mais adiante, ainda na mesma página: “Dado o salário por
peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força do
trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o
grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador
prolongar a jornada de trabalho, pois com isso sobe seu salário diário ou
semanal” (pag. 141).
O prolongamento da jornada de trabalho é mitificada e oculta pela ilusão de que cada um daqueles trabalhadores é dono do seu meio de produção, as máquinas. Na verdade, cada um deles é peça de um processo muito mais amplo no qual o cortador ganha uma parte alíquota do valor total da peça, assim como, sucessivamente, a costureira, o que faz zíper ou caseado, etc. Mas se mostram felizes “por ter trabalho”. E uma comenta: “Olhe só aqueles pobres da África. Toritama é o paraíso”.
O salário de cada um daqueles trabalhadores está, de fato,
condicionado a fatores econômicos e sociais muito mais amplo que a sua parcela
de trabalho. No entanto, é real o fato de que “quanto mais trabalha, mais
ganha”.
Essa questão da aparência – outro nome que se dá à ideologia
– aparece com mais vigor no Volume III d’O Capital, infelizmente pouco lido e
menos ainda compreendido. Maria José Silveira, a partir de um curso/seminário
no mestrado de Ciências Políticas na USP, cujo tema foi a leitura do Livro 3 de
“O Capital”, de Karl Marx, coordenado pelo Prof. José de Souza Martins,
produziu um trabalho intitulado “A Produção da Ideias”, no qual mostra como
Marx trabalha essa questão. Nas conclusões, a autora assinala que “como a
produção das ideias é um processo que, ao se manifestar e desdobrar, dissimula
enquanto revela, a grande questão na análise do processo ideológico é
justamente perceber quais são os momentos da produção desse processo: só assim
será possível reconstruir a totalidade no pensamento, colocando em seus devidos
lugares a aparência e a essência, descobrindo o invisível por de trás do
visível. Só assim será possível explicar não apenas o que estava escondido, mas
também o que era aparente, agora já não mais confundido com o todo, mas
entendido em sua verdadeira dimensão”.
A ilusão de que o trabalhador de Toritama é “dono de seu
tempo” esconde, assim, uma realidade muito mais complexa, que não é objeto do
documentário, é claro, nem tira dele sua beleza e sua força. É uma “ilusão
verdadeira” que oculta o todo.
No entanto existem conclusões de ordem política e ideológica
que precisam ser compreendidas.
No processo de discussão sobre a reforma da Previdência, por
exemplo, foram claramente enfatizadas as perdas que os trabalhadores terão com
sua aprovação.
Para os trabalhadores de Toritama, entretanto, isso não deve
surtir nenhum efeito, pois sua ilusão desvincula totalmente seu trabalho da
questão dos direitos sociais e trabalhistas. “Quanto mais trabalho, mais ganho”
é uma verdade, portanto. E que continuará sendo crença para aqueles
trabalhadores até que alguma crise, geral ou específica da indústria de
confecções, obrigue-os a trabalhar muito mais para receber cada vez menos.
O documentário mostra como a “uberização” já ultrapassou em
muito a área dos serviços e está entrando em cheio na produção industrial,
exatamente pelos segmentos que usam mais mão-de-obra e menos equipamentos, ou
seja, capital fixo.
Esse processo não vai parar. Os profissionais, sabemos, há
muito prestam serviços como “PJs”, abdicando (ou sendo forçados) dos direitos
sociais e trabalhistas com o pretexto de uma remuneração maior. “Pejotização é
o nome classe média para “uberização”
Os “donos do tempo” de Toritama estão na mesma posição que
os motoqueiros (também donos de seu instrumento de trabalho) que cada vez mais
se matam correndo de um lado para o outro nas grandes cidades, assim como todos
os que prestam serviços como “PJs”.
As consequências políticas disso tudo estão aí, inclusive na
desmobilização dos trabalhadores na luta por seus direitos.
Tudo isso enquanto esperam o carnaval chegar.
Tecelões em Toritama, motoqueiros em S. Paulo – todos “uberizados”
Uma das questões mais candentes
da atualidade cibernética que vivemos é a da difusão de Fake News e de
conteúdos tóxicos nas redes sociais. E o ânimo da turbe já mudou várias vezes.
O FB e o Tweeter já foram louvados ao serem considerados os instrumentos de
mobilização da Primavera Árabe, de manifestações contra os aiatolás e outros
quetais. E desde muito são preocupação constante no que diz respeito à pedofilia
e circulação de material pornográfico acessível a crianças, e mesmo redes que
induzem jovens a suicídio.
Desde a eleição do Trump nos EUA
e a eleição do Bolsonaro por aqui, a capacidade de manipulação política através
das redes sociais se torna cada vez mais evidente.
E aumenta o clamor pela
regulamentação da difusão de conteúdos. Aqui e alhures.
Aí os campos não apenas se dividem,
como se misturam.
As grandes companhias
tecnológicas se aferram ao conceito de liberdade de expressão e à “anarquia
capitalista”, mais um mantra que tenta atualizar e legitimar o sacrossanto
direito do mercado. O Zuck, do FB, ainda banca o “esperto” e faz uma proposta
de regulamentação que melhora as condições para que sua empresa cresça cada vez
mais (como uma rede wi-fi mundial que só acessa conteúdos liberados pelo FB).
E agora nos enfrentamos, aqui,
com a balbúrdia a respeito do inquérito que o Toffoli com cumplicidade do
Morais instauraram no STF contra Fake News e matérias caluniosas que circulam a
respeito do SFT e de alguns ministros em particular (os dois citados, mais o
Gilmar Mendes, e já foram ameaçados, inclusive fisicamente, o falecido Tori e o
Fachin, mais recentemente). Além do caso do pulha do Gentili, evidentemente.
Não faltou quem condenasse a
condenação do Gentili em nome do importante conceito da liberdade de expressão.
Um dileto amigo publicou no FB perguntando se ele chamasse o Toffoli de picareta vagabundo, estaria sujeito à prisão.
E foi apoiado por muitos, que não apenas concordavam como propunham organizar
um movimento e xingar o ministro de picareta vagabundo.
Meu comentário foi de que por
chamar o Toffoli de picareta vagabundo não iriam para a cadeia, mas se o
chamassem de puto (no sentido vulgar e homofóbico da palavra) e dissessem que
ele fazia michê na rodoviária de Brasília podiam ser processados criminalmente
e quem decidiria o assunto seria outro juiz.
Ora, convenhamos. Esse tipo de
comportamento tem tanto a ver com a liberdade de expressão quanto o cu com as
calças, para continuar no vulgar. É, sim, ofensa criminosa, e também não tem
nada a ver com humor, mesmo com toda a latitude escatológica que se permite aos
humoristas.
O Janio de Freitas, em sua coluna
de 18/04 na FSP, coloca bem os dilemas sobre a definição do que seja liberdade
de expressão.
Mas é preciso entender as razões
pelas quais chegamos ao estado de coisas no Brasil, e muito especialmente qual
o papel do STF (e do aparato judicial em geral), da polícia, do Congresso e da
imprensa.
Considero como causa remota – embora
não decisiva – a decisão de anos atrás de instaurar a tal TV Justiça e passar a
filmar as reuniões plenárias do STF. Os egos superfaturados de quem chega a ser
ministro do STF incharam cada vez mais. E a preocupação em aparecer bem no
filme, junto à imprensa e à dita “opinião pública” (ou opinião publicada e
manipulada pelos jornalões) ultrapassou o dever de fazer cumprir a lei.
E aí tivemos o lamentável
episódio do “julgamento” da Ação Penal 470 (me recuso a usar o apelido
impingido pelos jornalões), no qual vaidade (notavelmente a do relator Joaquim
Barbosa), pressão dos jornalões e delações jogaram um papel fundamental. O voto
da Ministra Rosa Weber condenando o Dirceu é antológico da degradação do STF
(Não há provas, mas a literatura jurídica e a convivialidade me permitem, então
condeno).
A indústria da delação chega ao paroxismo na tal de Lava Jato, com as sentenças do ex-juiz premiado pelo Bolsonaro. Virou um festival. Do tal power point do procurador baseado completamente em delações “premiadas” às sentenças, nada ali tem sequer cheiro de justiça.
Já falei sobre isso algumas vezes, principalmente aqui.
E a conclusão se faz: esse caso
atual do STF não é nada mais que “delação premiada” do torturado Marcelo
Odebrecht que está sendo mais uma vez usada pela tal “força tarefa” da
Lava-Jato, mais uma vez para pressionar o STF quando este tenta retomar as
rédeas e colocar esses torquemadinhas nos eixos.
Evidentemente que o STF, em seu
conjunto, tem culpa no cartório. Na medida em que foram não apenas cúmplices
como agentes das grandes farsas jurídico-políticas recentes, chocaram o ovo da
serpente. Ação Penal 470, a farsa do impeachment, a votação que permitiu o descumprimento
do preceito constitucional (e civilizatório) da presunção da inocência, e os
sucessivos recuos na reconsideração disso e na votação dos habeas corpus do
ex-Presidente Lula colocam o tribunal em uma posição extremamente frágil diante
dessa ofensiva.
Acrescente-se a isso dois outros
fatores: a sistemática tentativa de judicialização da política, a usurpação das
prerrogativas de legislar que é própria do Congresso Nacional e as esparsas
tentativas das casas legislativas de se opor a isso contribuem para esse ambiente
tóxico de desrespeito a normas básicas da Constituição Federal.
O Congresso Nacional, é claro,
também é cúmplice. Por ação – ao recorrer sistematicamente ao judiciário para
resolver seus próprios impasses – e por omissão, ao não tomar iniciativas
legislativas que se fazem urgentemente necessárias.
Como é o caso, por exemplo, da
legislação sobre Fake News, mentiras e calúnias online.
Ao não tomar iniciativas
legislativas pertinentes, o Congresso se torna impotente contra a usurpação, tanto
pelo Executivo como pelo Judiciário, de suas prerrogativas.
Além da imprensa oficial (os
jornalões, com o feliz apodo de PIG – Partido da Imprensa Golpista) dá sua
contribuição. Como biruta de aeroporto troca de rumos não de acordo com os
ventos, e sim de suas conveniências. Quando Bolsonaro age para cortar preciosas
verbas de uns para beneficiar outros, a grita cresce. Tem que ter pra todo
mundo…
Finalmente, e lamentável, a falta
de coerência de segmentos da esquerda. São contra as Fake News, mas na hora de
manter a coerência, parecem optar: há Fake News e “Fake News”; a liberdade de
expressão vira cláusula pétrea não sei nem do quê, mesmo para quem antes
defendia regulamentação que permitisse a rápida responsabilização de quem as
publicasse, ou abandonasse a prática do bom jornalismo de deixar as opiniões
para a página editorial e produzir um jornalismo minimamente equânime.
Não foi por nada que Dante
reservou o último círculo do Inferno aos delatores e traidores. Sem perdão, sem
remissão.
De repente, todo mundo constatou que a tal de “Fake News”
era realidade. Ufa! Com a revelação das presepadas da Cambridge Analytic e seus sucedâneos, assim como o uso e abuso
do FB pelo candidato que ganhou a eleição e agora finge que governa.
O caso mais recente, do ataque bolsonarista contra a jornalista Constança Rezende pela apuração que ela fez das movimentações queirozistas detectadas pelo COAF, me fez lembrar um livro que editamos em 1992, pela falecida Marco Zero. O livro “A Culpa é da Imprensa! – Ensaio sobre a fabricação da informação”, de autoria de Yves Mamou, jornalista francês que foi editor do Le Monde e trabalhou em vários outros meios de comunicação.
O livro parte do reconhecimento de que eventualmente a
imprensa engana e manipula, e muitas vezes chega a reconhecer que foi manipulada,
quando só receberam informações distorcidas e parciais (mas às vezes são também
cúmplices na publicação dessas notícias, fingindo inocente). E o autor descreve
várias instâncias disso.
O que lembrei, entretanto, foi de um caso específico que Mamou relata. É o de uma briga entre Edmond Safra, o banqueiro que morreu assassinado em um incêndio em Monte Carlo, e Jim Robinson, então presidente do banco American Express. Coisa de dinheiro grosso, como sói acontecer entre banqueiros. A briga entre os dois se cristaliza em 1984, e continua até 1987, azedando cada vez mais e levando a uma disputa entre o American Express e Safra nos tribunais suíços, que não aceitou as queixas.
Duas semanas depois que Safra inaugurou seu novo banco, um jornal de Mônaco publicou uma denúncia que o ligava à máfia, traficantes de drogas peruanos, a CIA e o escândalo do Irangate. O jornal era La Depêche du Midi, importante na região, e citava matéria do jornal peruano Hoy. Semanas mais tarde, o jornal francês publica uma série de quatro artigos com acusações ainda mais pesadas contra Safra.
Safra dependia de boa reputação para a condução de seus
negócios, e tinha dinheiro mais que suficiente para pagar advogados e detetives
para desenredar o troço. Acabou mostrando que o Banco American Express
contratou uma firma de “relações públicas” para montar secretamente uma
campanha de difamação contra ele, que começava no eixo Peru – Bolívia e seguia
pela América Central e México até ser reproduzida e legitimada pelas frequentes
reproduções de jornais, pelo La Depêche du Midi e outros jornais não apenas da
França, de onde se espalhou para os EUA.
Safra então levou aos tribunais Jim Robinson, o banco, os
operadores da campanha e outros executivos, ganhou uma bela indenização,
prosseguiu nos seus negócios, mas volta e meia tinha que desmentir notícias
difamatórias que pipocavam por ali e acolá, ainda a partir das primeiras
notícias.
No caso brasileiro, aparentemente a reação foi iniciada pelo
belga-marroquino Jawad Rhaib, que publicou a notícia de que a Constança
Rezende e o Estadão estavam em campanha
para destruir o governo do Bozo. O blog era insignificante, tinha apenas uns
vinte seguidores, mas a notícia “repercutiu” em um jornal da extrema direita
dos EUA e depois passou a circular pelos blogs bolsonaristas aqui no Brasil, a
partir de uma “entrevista” que a jornalista havia dado a um estudante e
pesquisador de uma universidade dos EUA. Essa filiação universitária do sujeito
nunca foi comprovada.
Como se pode ver, a técnica é a mesma. Primeiro se usa um
meio sem nenhuma expressão, como é o caso do blog do Rhalib, e a partir daí os
interessado manipuladores vão provocando as “repercussões” e reproduções,
eventualmente enfeitadas com mais detalhes, como é o caso da “entrevista” com
um falso pesquisador gringo.
A novidade de agora é que a Internet aumenta a velocidade de
propagação da desinformação. Mas também facilita seu desmascaramento, exceto
para os crentes da bolha, que continuam acreditando e reproduzindo a
falsificação que lhes interessa.
E aí restam duas lições. A primeira é que essa técnica das Fake News como instrumento difamatório antecede – e muito – o uso disso por Trump, pelos bolsominions e quejandos. A segunda é que os jornalistas brasileiros e todos nós temos que ser mais espertos: uma fonte desconhecida deve ser tratada com desconfiança, e falar inglês não é credencial nenhuma.
O livro de Yves Mamou só se encontra hoje em sebos. A História está nas páginas 171 a 176 do livro.