É CONTRA A ORDEM NATURAL DAS COISAS

Pais enterrarem os filhos é algo que considero como um dos atos mais antinaturais que possam existir. Os filhos enterram os pais e herdam o fardo. A morte de filhos é algo que sempre me deixa profundamente triste.

Mas…

Com toda a pena que me dá a morte do filho do governador, é bom lembrar:

– Os outros quatro mortos também eram filhos. De quem? Qual a idade deles?

– Qual a comoção provocada pelo assassinato diário dos meninos negros e pobres no Brasil? Aqui em S. Paulo, pela PM comandada pelo Dr. Alkmin… A dor das mães e pais raramente é registrada. Vai ver, para a imprensa e para certo tipo de gente, são filhos da incubadeira.

– Como se explica a hipocrisia de ser contra as políticas que ajudam os filhos dos pobres a sobreviver, como o Bolsa Família e demais programas sociais implantados nos últimos doze anos?

O filho do governador, entretanto, tem o velório transmitido ao vivo pela TV. É muita falta do que fazer.

É uma merda.

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CHINESES E NOBEL DE LITERATURA

Tentei ler, já há alguns anos, o romance “Montanha da Alma”, do chinês Gao Xingjian, que foi o primeiro daquele país a ganhar o Nobel de literatura. Não consegui. Romance metafísico, chato demais. Não consegui passar das primeiras cinquenta páginas. E sou desses que dificilmente larga um romance, ou sai do cinema diante de um filme ruim. É preciso ser superlativamente chato ou ruim para me fazer desistir.

Gao Xingjian foi profusamente louvado pela imprensa ocidental em 2000, quando ganhou o Prêmio. Já os chineses – inclusive o sindicato dos autores – acusou os suecos de fazer manobra anti-chinesa, etc. etc.

Em 2012, outro chinês abiscoita o diploma do Nobel, que nenhum escritor brasileiro conseguiu. Mo Yan foi o vencedor. Dessa vez, ao contrário de Gao Xingjian, Mo Yan não apenas vivia na China, como era estimado pelo regime e elogiou repetidas vezes o Partido Comunista. Pronto, foi a senha para que acusassem os suecos, desta vez, de ceder à pressão do governo de Beijing e premiar Mo Yan como “compensação” por haver premiado Gao Xingjian. As críticas recrudesceram quando se lembrou que Liu Xiaobo, que recebeu em 2010 o Nobel da Paz, está preso. Dissidentes famosos, como o pintor-escultor Ai Weiwei, lamentaram essa premiação.

Eu fiquei lá de pé atrás com esse tiroteio, pois havia visto o “Sorgo Vermelho” de Zhang Yimou, baseado em um dos romances de Mo Yan, e nada condescendente com a situação dos camponeses chineses. Outros filmes já foram feitos a partir dos livros do escritor, inclusive comédias.

Agora, terminei de ler “The Garlic Ballads” – “As Baladas do Alho”, de Mo Yan.

mo yan garlic O livro conta a história de um momento – já na época do “prosperai!”, no qual as autoridades de uma comunidade, sintomaticamente chamada de Paraíso, convencem os camponeses a plantar extensivamente alho, prometendo a compra da colheita a preços vantajosos. Todo mundo planta alho, e quando chega a colheita, o governo municipal deixa de comprar a maior parte da produção, que apodrece. Havia alho em demasia.
As relações de parentesco jogam um papel importante no livro. Gao Ma, um dos camponeses, ex-soldado, apaixona-se por Fang Jinju, filha de seus vizinhos, e é correspondido. Só que Jinju havia sido prometida em casamento, a um parente de um dos dirigentes do Partido e autoridade do município, em uma intrincada troca de favores para conseguir uma esposa para seu irmão mais velho, que era semi-aleijado. Casamentos contratados são legalmente proibidos, mas a tradição ainda é amplamente aplicada, e os pais negociam os casamentos de filhas e filhos.

propaganda Guerra

Com a crise de superprodução, a população se revolta e depreda a sede do governo municipal e ainda dá umas porradas em alguns funcionários. Um dos cabeças espontâneos do assalto é Gao Ma, que é preso. Só que, junto com ele, vai presa a mãe de Jinju (que o odiava), e Gao Yang, outro camponês. A mãe de Jinju, a “Quarta Tia”, participa do tumulto por conta da raiva por seu marido haver sido morto em um acidente com o carro, dirigido por um motorista bêbado, que estava a serviço do Secretário Wang, o chefão local do PC. Gao Yang foi testemunha do acidente, e paga por isso.

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NOEL ROSA AINDA DÁ (MUITO) MOLHO

Noel324O crítico Tárik de Souza escreveu, faz algumas semanas, uma resenha muito elogiosa do recém lançado “Noel Rosa, Preto e Branco”, com a cantora Valéria Lobão e vinte e dois pianistas, que “revezam-se em duetos com a solista, de voz límpida e aguda, também versada em vocalizes e scats” (Carta Capital, número 837).

Na verdade é um CD duplo, e o time de pianistas é excepcional: Adriano Souza, André Mehmari, Carlos Fuchs, Cláudio Andrade, Cliff Korman, Cristóvão Bastos, Duo Gisbranco, Eduardo Farias, Fernando Letzke, Gabriel Geszti, Gilson Peranzetta, Itamar Assiare, João Donato, Leandro Braga, Marcelo Caldi, Marcos Nimrichter, Rafael Martini, Rafael Vernet, Robert Fuchs, Tomás Improta, Vítor Gonçalves.

São onze canções de Noel, com diferentes parceiros, em cada um dos discos. Desde as mais conhecidas, com o Pastorinhas, Prá que mentir, Feitio de Oração, Meu Barracão, Filosofia, Último Desejo, até outras que frequentam menos, ou quase nunca, o cancioneiro contemporâneo, inclusive algumas com gosto de música acaipirada, como Sinhá Ritinha (Noel e Moacyr Pinto), e Minha Viola (Noel) e Não Brinca Não, com Cláudio Andrade. Várias jogam com subtendidos, jogos de palavras ou frases de duplo sentido e uma constante ironia.

Julieta (Noel e Eratóstenes Frazão): “Julieta, nem falar em Romeu tu hoje queres/ borboleta sem asas? Tu preferes que te façam carícias de papel./ Nos teus anseios loucos, delirantes/ em lugar de canções queres brilhantes/em lugar de Romeu, um coronel.”

Ou a gozação do Mulato Bamba (Noel): “O mulato é de fato/ e sabe fazer frente/ a qualquer valente/ mas não quer saber de fita/ nem com mulher bonita/ Sei que ele anda agora borrecido/porque vive perseguido/ sempre, a toda hora/ ele vai-se embora/para se livrar/ do feitiço e do azar/ das morenas de lá// As morenas vão chorar/ vão pedir para ele voltar/ e ele então diz com desdém:/ “quem tudo quer, nada tem”.

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O RIO DE JANEIRO CONTINUA ÍNDIO (PARA CELEBRAR O ANIVERSÁRIO DO BALNEÁRIO MAIS FAMOSO DO BRASIL)

rio indio
O Bessa, mais uma vez, vai na veia. o Rio de Janeiro continua lindo, sim. Mas, na verdade, isso se deve a que também continua índio (apesar de às vezes ter raiva disso).
Leiam, aprendam e divirtam-se com mais um Taquiprati.

Taquiprati

Francês:   Mamópe setã? (Onde é que você mora?)

Índio Tupinambá do Rio: Kariók-pe. (Em Carioca)

(Do  “Colóquio”  de Jean de Léry – 1558) 

O Rio de Janeiro continua sendo, 450 anos depois, índio, mas nenhum guarani foi convidado para sua festa de aniversário. Neste domingo, 1° de março, nenhum índio soprará a velinha do tradicional bolo de quase meio quilômetro que a Sociedade dos Amigos da Rua da Carioca fez para festejar os 450 anos da cidade, como parte da programação que prevê, ao longo do ano, a realização de 600 atividades: conferências, seminários, projeções, exposições, missa, performances, teatro, orquestras, bandas, salva de tiros, regata… Os índios, porém, estão ausentes de quase todas.

Mas os índios estão presentes na história carioca, a passada e a atual. Os primeiros povoadores que viviam aqui há pelo menos 8 mil anos, “eram indivíduos de forte compleição, baixos, com o rosto estreito, nariz afilado e com pronunciadas arcadas sobre os olhos”, escreve o arqueólogo Ondemar Dias. Algumas evidências mostram que, por volta de 3.000 a.C., houve uma “explosão de vida” no litoral, quando os pescadores começam a usar redes e armadilhas de pegar peixes na baía de Guanabara e surgem os primeiros agricultores, segundo Alfredo Mendonça, arqueólogo amazonense que estudou o Rio.

No séc. XVI, quando os europeus desembarcam, encontram o entorno da baía de Guanabara habitado por milhares de índios Tupinambá, Temiminó e Tupinikin. Todos eles desenvolviam práticas sociais trabalhando, narrando, rezando, cantando, sonhando, sofrendo, reclamando, brigando, rindo e se divertindo em línguas da família tupi-guarani. Com essas línguas, classificaram o mundo. Nomearam rios, lagos, montanhas, pedras, árvores, plantas, flores, aves, peixes, insetos, mamíferos e outros animais.

Viviam em centenas de tabas, 36 das quais foram mapeadas na Ilha do Governador pelo frade André Thevet, que veio na frota de Villegagnon. Outras 32 aldeias foram listadas pelo calvinista francês, Jean de Léry, em 1558. Os portugueses acrescentaram mais povoações. A mais importante é a aldeia Kariók situada no sopé do morro da Glória, na foz do rio Carioca, que tinha uma segunda foz, mais caudalosa, na praia do Flamengo. Cada aldeia tinha população que variava entre 500 a 3.000 índios, todos dizimados pelo sistema colonial, responsável por uma catástrofe demográfica.

Tem índio no Rio 

Os territórios indígenas foram invadidos, suas aldeias destruídas, suas terras ocupadas, loteadas e distribuídas. O recôncavo foi todo retalhado. Com a fundação da vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, sesmarias foram concedidas para constituir o patrimônio da cidade, incluindo a baía de Guanabara e adjacências. Para fora do núcleo urbano, estendia-se zona agrícola e pastoril, com lavouras, engenhos e campos de pastagem.

No Rio, no período colonial, os índios trabalharam compulsoriamente na abertura de picadas e clareiras, na derrubada de árvores e seu transporte, remando canoas, na construção de feitorias, engenhos e fortalezas, em olarias, na agricultura, na fabricação de farinha, na caça e pesca. E até meados do séc.XIX, 15 aldeias da Província abasteciam ainda a cidade com índios que prestavam serviços domésticos, faziam biscates ou eram recrutados para as obras públicas, o Arsenal da Marinha e a pesca da baleia.

Esses “índios urbanos”, quase sempre sem domicílio certo, formavam uma “tribo” desfigurada que vagava pelas tabernas da Candelária, Santa Rita e São José, entrando em  conflito permanente com a Polícia. A própria Câmara Municipal do Rio requisitava das prisões os índios para as obras públicas, como foi o caso da reforma do Passeio Público, em 1831, toda feita com trabalho indígena.

Vários estrangeiros que visitaram a cidade no séc. XIX deixaram relatos, além de rica documentação iconográfica como as de Debret (1768-1848) e Rugendas (1802-1858). Índias lavadeiras, à beira do rio, no Catete, onde lavavam roupa, foram documentadas por Debret que escreveu: “Seus filhos tornam-se, com 12 ou 14 anos, excelentes criados”. Retrata índios de diferentes etnias alojados na ilha das Cobras, num barracão da Marinha.

No séc. XX, os índios continuam a transitar pela capital da República, para onde migravam por diversos motivos. O Rio sempre foi e nunca deixou de ser índio. Hoje, o estado do Rio abriga apenas 1.9% do total da população indígena do Brasil, parte dela vivendo na capital. Os dois últimos censos do IBGE indicam que em 2000 moravam dispersos pelos bairros da periferia da cidade cerca de 15.622 índios, que diminuiu em 2010 para 6.764, mas que cresce se incluirmos os 11.961 índios que moram na Região Metropolitana.

A carioquice

O Rio continua índio no seu patrimônio cultural material e imaterial, que modelou a identidade carioca, ainda que muitos ignorem tais influências e outros a rejeitem mesmo sem conhecê-las. O Rio é  índio em seu patrimônio linguístico, no jeito de falar e de ser. Não é possível sequer se identificar e indicar o endereço sem pagar tributo simbólico às línguas indígenas.  Carioca é nome do rio sagrado dos Tupinambá que significa “morada (oca) do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora. Da mesma origem são nomes de bairros e acidentes geográficos.

O sotaque carioca está presente na busca de uma linguagem musical brasileira realizada, entre outros, pelo carioca de Laranjeiras Heitor Villa-Lobos, que exalta “Tupã, deus do Brasil” noCanto do Pajé  e canta saudoso: “Anhangá me fez sonhar com a terra que perdi”. Está também no maestro Carlos Gomes, paulista que viveu no Rio e usou em sua ópera O Guaraniinstrumentos indígenas como maracás, inúbias, borés e flautas. O Rio continua índio no carnaval, no candomblé e na literatura.

Os autos teatrais de Anchieta, o poema Caramuru (1781) de Santa Rita Durão, a obra épica A Confederação dos Tamoios (1856) de Gonçalves de Magalhães mostram que a presença do índio na literatura marcou a formação da identidade nacional, o que foi referendado por Gonçalves Dias e José de Alencar que viveram na capital. Os índios foram imaginados como modelo de brasilidade e, num certo sentido, de carioquice, com os Tamoio ou Tupinambá sendo cantados em prosa e verso. 

A carioquice do Rio está impregnada por contribuição dos índios à identidade local num processo histórico violento, em que conhecimentos subterrâneos foram repassados oralmente de uma geração à outra no campo da medicina, da farmacologia, da culinária, da biologia, da agronomia, da religião, das festas, dos rituais. Os saberes indígenas acabaram legando alternativas de sobrevivência nos trópicos, transmitindo-nos inventos adaptativos que desenvolveram em milhares de anos, concretizados nos métodos de plantar, caçar, pescar e preparar alimentos.

O Rio continua índio no patrimônio arqueológico da cidade, parcialmente destruído pela especulação imobiliária, cujos sítios oferecem pistas sobre sua ocupação.   Museus e arquivos são também territórios indígenas, pois guardam marcas indeléveis da presença deles. Esse patrimônio documental permite identificar a contribuição indígena na configuração da paisagem da cidade, cujos parques e jardins contaram com o trabalho dos índios, assim como a construção de edifícios, fortalezas e monumentos.

Os Arcos da Lapa

No patrimônio de pedra e cal, entre outros, encontramos os Arcos da Lapa, construído com o sangue e o suor dos índios, conforme carta do sec. XVII escrita por André Soares, responsável pela construção do Aqueduto que trouxe água do rio Carioca para a cidade, “a qual obra se não pode fazer sem assistência dos Índios, que são os trabalhadores que naquellas partes costumão trabalhar”. O autor menciona índios nas obras do Senado da Câmara e nos engenhos de particulares. A informação é confirmada pelo jesuíta Plácido Nunes (1683-1755), em carta dirigida ao Vice-Rei do Brasil:

Em nossos tempos todas as Fortalezas, que se acham no Rio de Janeiro  foram feitas pelos Índios (…) Estes mesmos abriram o Caminho Grande, que vai do Rio de Janeiro para Minas até o Rio Paraibuna.  Estes os que conduziram todos os materiais e instrumentos para a Casa de Fundição (…). Estes, finalmente os que trabalharam o Aqueduto pelo qual se pôs a Água da Carioca na Cidade do Rio de Janeiro”.

Confirmando que o Rio de Janeiro continua índio, na resistência e nas alianças, a cidade foi palco de manifestações, em junho de 2013, de indígenas da denominada Aldeia Maracanã, aliados a não-indígenas, que cobraram a preservação do antigo prédio do Museu do Índio condenado à destruição. Diante do clamor público, o então governador Sérgio Cabral, retrocedeu e anunciou a restauração do imóvel situado ao lado do Estádio do Maracanã para sediar um Centro de Referência das Culturas Indígenas (CRCI). 

Depois de discutir com 41 líderes indígenas de todo o país, o governo definiu por decreto os objetivos do CRCI, que se compromete a“promover, preservar e difundir a história, os valores, os conhecimentos e todos os aspectos culturais dos indígenas brasileiros, com foco especial nos grupos que vivem ou viveram nas diversas regiões do estado do Rio de Janeiro”.

Não é preciso aniquilar o passado para entrar na modernidade, o povo carioca tem muitas razões para se identificar com a diversidade das culturas que aqui floresceram. O Rio continua índio. Resistindo. Sempre. O Rio de Janeiro, fevereiro e março.

P.S. 1 – Como parte das comemorações, a Secretaria Municipal de Educação do Rio publica “Uma História Concisa da Cidade do Rio de Janeiro: Rio 450 anos”, organizado pelo historiador Ilmar Rohloff de Mattos, com 20 artigos, um deles sobre os índios do Rio de Janeiro escrito por esse locutor que vos fala de onde foi extraído o título acima e alguns trechos aqui reproduzidos.

P.S. Ilustrações: Amaro Junior, da Ugagogo Serviços de Informações Digitais, e Felipe Martins.

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Jazz, precisão e improvisação

whiplash (face) Roberto Gervits, que é cineasta (dos bons), publicou no dia 21/2, no Caderno 2 do Estadão, uma crítica a Whiplash, o filme de Damien Chazelle, que concorre ao Oscar por conta da interpretação de J. K. Simmons do professor sádico de uma academia de música, moldada na Julliard. Fletcher, o personagem de Simmons, obriga o jovem Andrew (Miles Teller), aluno de bateria, a esforços terríveis para disputar o lugar na orquestra que ele dirige.
Gervitz parte para algumas interpretações psicanalíticas sobre a relação entre o aluno e o professor que não vou nem discutir. O que me chamou atenção no artigo de Gervitz foi esse trecho:

“A música é tida como a mais abstrata das artes e o jazz, o mais livre dos gêneros. Salta aos olhos a ignorância musical de Chazelle, que escolheu o jazz para fazer a apologia da precisão, pois é justamente nesse gênero que o improviso é considerado o momento máximo, escapando a qualquer partitura e limite. Falo do jazz moderno, que ganha força com Charlie Parker, tantas vezes citado no filme, como o músico que caiu em si depois que lhe atiraram um prato na cabeça (!!!).

O conceito tecnocrata de perfeição confunde grande arte com virtuosismo, ignorando a grandeza da performance jazzística em que os instrumentistas criam sós e conjuntamente, desafiando o que é certo e errado e entregando-se ao desconhecido.”

E vai por aí, criticando duramente a ideia de perfeição expressa por Fletcher no filme.

Bom, não sou músico, nem cineasta, nem teórico de musicologia e muito menos de jazz. Só gosto de ouvir. E de ver filmes. E fiquei muito impressionado com Whiplash.

Evidentemente os “métodos pedagógicos” de Fletcher, que estão no centro da estrutura dramática do filme, são altamente questionáveis.

Mas acho que Gervitz confundiu a criatividade fundamental do jazz com algo que lhe é estranho: incompetência técnica para estar à altura das necessidades da execução e da criação. Confundir precisão com criatividade não é o caso ali. Lembremos sempre: a história acontece dentro de uma escola.

Fazendo uma pequena digressão pela literatura. A proliferação de porcarias publicadas, autopublicadas e mesmo editadas por aí, parte da curiosa noção de que “qualquer um” pode escrever, “fazer literatura”. Pombas, se o escritor não domina as técnicas necessárias para enfrentar o gênero no qual deseja se expressar, o fracasso – ou, no mínimo, a mediocridade – salta aos olhos de qualquer leitor com um mínimo de contato com a boa literatura. É preciso muita técnica para passar impunemente da terceira para a primeira pessoa em uma narrativa, e transformar isso em uma expressão criadora. “Escrita automática” – e que perdoem meus queridos surrealistas que andaram experimentando, e logo abandonaram essa coisa, pode gerar “romances” espíritas ou “inspirados”, cheios de boas intenções e totalmente vazios de qualidade literária, prontos apenas para acalentar a alminha de seus leitores.

Em resumo, “falar” um idioma não qualifica ninguém como criador de literatura no próprio. E soprar mal e porcamente um sax, ou batucar caixinha de fósforo em mesa de bar não transforma ninguém em músico.

Ora, Whiplash conta uma história que se passa em uma academia de alto nível. Ali se está para aprender, entre outras coisas, as técnicas de cada instrumento. Técnicas absolutamente necessárias se o músico quer improvisar, tocar com os outros. A seção rítmica, então, simplesmente não permite erros: se o cara perde o tempo, literalmente fode com o trabalho de todos os outros músicos.

Outra coisa que me pareceu estranha foi uma certa confusão entre a liberdade de criação – e os solos tão característicos do jazz – com uma certa experimentação “sem regras”. Não me parece ser uma verdade absoluta. As “jam sessions” acontecem em dois contextos. O primeiro, o mais importante, é precisamente o processo criativo da performance. Naquele momento os músicos se jogam. Mas estão sujeitos ao crivo dos colegas que aceitam ou não o que ele faz naquele momento para se integrar à contribuição no arranjo coletivo. Na hora da apresentação pública, o arranjo já está bem consolidado. Pode até não estar em uma partitura, mas não é a hora de sair do combinado. O segundo tipo de “jam sessiom” é quando um conjunto se reúne mais informalmente, às vezes com outros músicos e, desde que haja uma qualidade técnica parelha entre esses músicos, e se diverte – e improvisa, sobre trechos conhecidos, standards ou temas daquele grupo, mas conhecidos por todos. Só que desse segundo tipo de experiência, que realmente pode ser extremamente gratificante, o resultado se esvanece no final da sessão. A menos que algum dos integrantes depois use o material para o desenvolvimento da performance do grupo, de modo permanente. Alguns dizem que o verdadeiro jazz é só esse. Eu não vejo uma contraposição entre a experimentação e a performance pública de arranjos consolidados.

Certamente, e isso é essencial no jazz, existem os momentos de improvisação, os solos. Mesmo esses seguem regras, não são tão “livres” como se quer pensar. Estão dentro do tema e se desenvolvem dentro dos padrões melódicos e harmônicos desse. Mesmo as “transgressões”, como já ficou abundantemente provado são, na verdade, projeções harmônicas bem construídas dentro da estrutura original. Se não, vira simples cacofonia.

Evidentemente existe evolução dentro dos grupos. Quem já ouviu – para ficar também em um clássico – vários arranjos desenvolvidos pelo Duke Ellington para qualquer uma de suas músicas, percebe as mudanças. Que acontecem tanto na estrutura dos arranjos quanto na adaptação às diferentes formações dos conjuntos ou de seus integrantes.

Qual o diferencial que aparece na apresentação pública – seja lá qual for o arranjo combinado – o modo de executá-lo é o que distingue grandes intérpretes dos medíocres. O ruim simplesmente erra o tempo, desafina, pula notas, deixa os demais músicos pendurados ou correndo atrás dele. O medíocre pode tocar certinho, mas vai soprar um sax como um Charlie Parker, ou um Coleman Hawkins (para pegar um mais antigo, e tão bom quanto)? Nem vem. Isso não acontece.

Os elementos rítmicos do conjunto de jazz são essenciais para manter a unidade do grupo, principalmente quando a execução tem mudanças de tempo. Sem o baterista e o contrabaixista, a coisa fica difícil. Principalmente no caso do primeiro, a técnica – e o treinamento para manter constante a evolução da estrutura rítmica – a receita desanda. Um membro do grupo de sopros pode até perder um tempo, ou pular uma nota, mas se o baterista erra, lascou-se. E nem sou lá grande fã desses solos às vezes imensos que abrem para os bateristas. Para mim, o trabalho de base é mais importante.

willi winton norah Enquanto escrevia essas mal-traçadas – e talvez mal-informadas – linhas, ouvia um CD bem interessante: Wyinton Marsalis, Willie Nelson e Norah Jones em uma apresentação ao vivo em homenagem à música do Ray Charles, gravada em 2011. Querem uma mistura mais heterogênea? É difícil achar: um músico “country” com voz e guitarra característicos, uma cantora mais pop e um trompetista da mais pura tradição jazzística, e seu conjunto. Depois dei uma “googlada” para ler as críticas. Em geral, muito elogiosas. Mas um dos críticos reclamava exatamente dessa heterogeneidade. O crítico do The Daily Telegraph disse: “perhaps a result of the one-off nature of the project making it hard for the musical personalities to fully gel”. Ou seja, o fato de ser uma experiência única torna difícil para essas personalidades musicais se integrarem totalmente”. E olhem que, com certeza, ensaiaram bastante.

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Um Taqui Pa Ti PAI D’ÉGUA

A combinação da sabedoria popular com os saberes acadêmicos não é coisa simples nem fácil. O risco de cair no folclore e na mitifcação populista está sempre presente.

O MEC experimenta, há anos, o trabalho de resgate do saber indígena. Recuperou e ampliou alguns problemas estaduais de ensino bilingue (acho que a Freida Bittencourt, no Amazonas, começou um, faz anos) e agora começa a estender esse trabalho juntamente com algumas Universidades federais. A UFSC é uma delas, e já tem um curso de licenciatura, o Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica.

O Bessa, que se dedica ao assunto há muito tempo, foi lá para a defesa dos primeiros TCCs de graduandos, e conta a história em um Taqui Pra Ti pra lá de pai d’égua.

Capturar

(De Biguaçu, SC) Três pesquisadores indígenas defenderam nesta quarta feira (4/2) seus trabalhos de conclusão de curso (TCC). Ronaldo A. Barbosa batizado em guarani como Karai Djudescreveu, com os pés na terra, a agricultura tradicional e, para ilustrar suas hipóteses, trouxe da roça vários tipos de milho, melancia, amendoim, aipim, abóbora e batata doce. Já seus colegas Geraldo Moreira (Karai Okenda) e Wanderley Moreira(Karai Ivyju Miri), com os olhos no céu, enveredaram pela astronomia e trouxeram um mapa do universo que demarca o céu guarani com suas estrelas e constelações.

Alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, eles fazem parte da turma de 120 índios Xokleng Laklãnõ, Guarani e Kaingang, com ingresso em fevereiro de 2011 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Quatro anos depois, as defesas mencionadas – as primeiras da UFSC em terra indígena – aconteceram não no campus, mas numa aldeia com o nome poético de Reflexo das Águas Cristalinas (Yynn Moroti Wheráem guarani), localizada no município de Biguaçu, para onde os membros da banca se deslocaram.
As duas monografias se complementam como se fossem capítulos de um livro, pois os Guarani para verem a terra, olham o céu. Com a leitura do céu, elaboram o calendário cosmológico chamado Apyka Miri, que conta o tempo, marca o clima, a chegada da chuva, a época de extrair o mel e de semear, o tempo da colheita e de fazer artesanato, a duração das marés, a caça e a pesca, tudo em sintonia com Nhanderu Tenonde – o Pai Criador e com Nhamandu – o Pai Sol. A astronomia e a religião é que dão suporte para a agricultura guarani, que tem o pé na terra e o olho no céu.
O pé na terra
Um ritual com apresentação do coral e dança de crianças indígenas precedeu a defesa da monografia sobre agricultura, de 56 páginas, ilustrada com fotos e vídeo feitos por Ronaldo. Paramentado com um cocar de penas coloridas, ele começou sua exposição formulando várias questões: quais as formas tradicionais usadas pelos Guarani para  cultivar as plantas e quais delas se mantém na atualidade? Que tipo de ferramentas são usadas? Quais as sementes mais cultivadas? Qual a época de cultivo? O que fazer diante das novas tecnologias e do mercado?
Para buscar as respostas, ele combinou vários procedimentos de pesquisa.  Entrevistou velhos sábios e reproduziu as entrevistas em língua guarani. Cruzou essas narrativas orais com pesquisa bibliográfica. Leu documentos do Ministério de Desenvolvimento Agrário, textos de Egon Schaden, de Maria Inês Ladeira, algumas teses e dissertações. Além disso, saiu a campo e registrou suas observações pessoais feitas em roças de três aldeias, de onde trouxe diversos tipos de milho. Desenhou o croqui das áreas cultiváveis e ali identificou variedades de plantas.
Desta forma, as imagens registradas com diferentes técnicas incluíram desde desenhos coloridos feitos manualmente pelo autor, passando por fotos das roças e das pessoas entrevistadas até o mapeamento das aldeias com imagens de satélite do Google Earth. No final, a projeção do vídeo sobre o tema reforçou a relação da agricultura com o mundo espiritual guarani, destacando o ritual do Nhemongaraí, quando se dá o benzimento de sementes e de alimentos junto com o batismo das crianças.
Nos dias atuais a agricultura tradicional guarani é como se fosse uma agricultura orgânica ou biológica dos não indígenas porque não usa nenhum tipo de adubo químico – escreveu Ronaldo, que chama a atenção para “as armadilhas” do mercado. “De alguma maneira hoje devemos controlar o que vem de fora para não afetar diretamente a nossa produção, a nossa cultura” – ele diz, apontando como lugares de luta a escola indígena e “a Casa de Reza (Opy),que é a nossa primeira escola”.
O olho no céu
A letra de Nhanderu está escrita no céu e na natureza, mas é preciso aprender a ler essa letra – explicou Alcindo Moreira (Wherá Tupã), 106 anos, presente na defesa ao lado da esposa Rosa Mariani Cavalheiro, 98 anos, ambos entrevistados por Geraldo e Wanderley, seus filhos, a quem ensinaram a ler o céu. O TCC feito pelos dois trata justamente do calendário guarani, da passagem do tempo e das estações,  que podem ser registradas através da observação das estrelas e das constelações.
A pesquisa explorou um campo relativamente novo para a academia – a arqueoastronomia – disciplina que estuda os conhecimentos astronômicos dos povos originários da América e que a partir de 1970 começou a ser estudada em universidades europeias e americanas. No Brasil, a  Ilha de Santa Catarina é justamente a região mais rica em vestígios arqueológicos sobre o tema – segundo o físico Germano Bruno Afonso, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), cujos trabalhos são citados no TCC, de 48 páginas, com fotos, desenhos e um vídeo feito pelos autores.
Os dois irmãos trilharam caminho similar ao de seu colega, usando metodologia da “pedagogia da alternância”, que foi bem trabalhada nas 3.420 horas de duração do Curso de Licenciatura, distribuídas em “tempo universidade” e “tempo comunidade”, com a integração dos dois espaços na produção do conhecimento.
Entrevistaram os velhos sábios guarani e cruzaram os dados obtidos com os textos míticos recolhidos por Leon Cadogan, com os escritos de Bartomé Meliá – que foi professor no curso e com a observação do céu.
Todos os povos antigos faziam a leitura do céu. Se não fizessem, não sobreviveriam. Trabalho muito com índios, com astronomia indígena, principalmente com os conhecimentos dos pajés – diz Germano Bruno Afonso, doutor em Astronomia e Mecânica Celeste pela Universidade de Paris VI, com pós-doutorado no Observatório da Côte d’Azur e Prêmio Jabuti de 2000 com o livro “O Céu dos índios Tembé“. Ele reconhece que muitas de suas afirmações “se baseiam no modo como os pajés me explicaram a fazer a leitura do céu e na sua forma de pensar”.
Como os índios pensam
Foi essa leitura que Geraldo e Wanderlei fizeram trabalhando nos últimos sete anos para reconstituir uma versão do calendário guarani. Orientados por Wherá Tupã, registraram o conhecimento oral antigo, observaram as principais constelações, descreveram seus significados para as atividades cotidianas e construíram uma réplica do relógio guarani, desenvolvendo uma metodologia para ensinar as crianças da aldeia, que desta forma aprendem mais facilmente. Germano Bruno confirma:
– Para o ensino da Astronomia às crianças, o céu guarani é um auxiliar precioso. Quando elas aprendem as constelações indígenas – da Anta, do Veado, da Ema, da Cobra, da Canoa, do Homem Velho, etc – a versão ocidental fica mais fácil de ensinar. Não precisa forçar a imaginação, você olha e enxerga. Por que? Porque os índios não apenas juntam as estrelas brilhantes, mas formam as figuras com as manchas claras e escuras da Via Láctea. Assim, eles veem mesmo determinado animal no céu. Como aquela brincadeira que se faz com as crianças de enxergar desenhos nas nuvens.
Os dois concludentes esclarecem que “o pensamento guarani não é estático, nem imutável. As constelações sazonais oferecem uma enorme diversidade de interpretação. Para acessar essa cosmologia é preciso considerar a localização física e geográfica de cada grupo indígena, com os que habitam o litoral e o interior ou diferentes latitudes“.
Outras defesas de TCC ocorrerão até final de fevereiro. As monografias estão comprovando que os índios são capazes de se apropriar dos métodos da academia para produzir conhecimento, mas sobretudo que eles trazem relevante contribuição para que a universidade aprenda como pensam os índios. Ronaldo, que antes se formou como técnico em agropecuária no Colégio Agrícola de Araquari (SC), diz que ele tem hoje a visão de dois mundos e pode transitar por ambos: “Dessa forma está sendo plantada uma semente onde vamos poder colher bons frutos”.
Ah, ia me esquecendo. Por falar em bons frutos, entre uma defesa de manhã e a outra de tarde, os integrantes da banca almoçaram os anexos da monografia: milho, melancia, cará, batata doce. Estavam deliciosos. Nota dez.
P.S.1 As bancas examinadoras foram compostas por Helena Alpini (orientadora), Maria Dorothea Post Darella, Aldo Litaiff e este locutor que vos fala, todos professores do curso. Mas de outra espécie de “banca informal, fizeram parte os sábios guarani Alcindo Moreira, Rosa Mariani Cavalheiro e Nadir Amorim, que aprovaram o trabalho dos três alunos.
P.S. 2 – A UFSC apresentou em 2009 proposta do Curso de Licenciatura ao PROLIND – um programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas indígenas. Agora, negocia com o MEC para que a Licenciatura Intercultural Indígena se transforme num curso regular a partir de agosto de 2015. A equipe esteve formada, entre outros professores, por Maria Dorothea Post Darella, Ana Lúcia Notzold, Clóvis Brighenti, Lucas Bueno – coordenador geral e Rivelino Barreto Tukano, coordenador pedagógico.
Foto dos concludentes com dona Rosa e seu Alcindo de Iclicia Viana.

 

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O ALCORÃO É MAIS EMBAIXO

Bessa, na veia, através do filósofo franco-islamista Abdennour Bidar.

Capturar

 

MEU QUERIDO MUÇULMANO OU O ALCORÃO É MAIS EMBAIXO
José Ribamar Bessa Freire
25/01/2015 – Diário do Amazonas

 

No domingo passado abordamos aqui o atentado ao jornal Charlie Hebdo, na França, o que provocou intensa discussão. Um amigo francês me explicou que quem quiser entender essa história e a relação do mundo muçulmano com o Ocidente, deve procurar ler o filósofo Abdennour Bidar, 44 anos, professor nas Grandes Escolas de Paris, que escreveu vários livros sobre filosofia da religião, entre os quais “O Islã sem submissão” que discute o existencialismo muçulmano e “O Islã diante da morte de Deus”, que reflete sobre a alternativa, para ele superada, entre a fé em Deus e o ateísmo, onde destaca a necessidade de se inventar um novo sentido para a vida.
Os muçulmanos dizem que esse filósofo é francês. Franceses juram que ele é estrangeiro por causa do nome Abdennour – que em árabe significa servidor da luz.  Passou toda sua infância na França dividido entre os dois mundos: na sexta-feira era muçulmano e no sábado convivia com seu avô francês, que era ateu e nunca mencionava o Islã, conforme ele mesmo conta no seu livro “Self Islã, História de um Islã pessoal”. Publicou recentemente no jornal da Tunisia Huffington Post Maghreb uma carta aberta dirigida aos muçulmanos, que me foi remetida pelo citado amigo francês. Não resisti. O prazer de ler o texto foi tão grande que decidi traduzi-lo para compartilhá-lo aqui com os leitores.
A versão impressa traz apenas trechos da carta que está sendo publicada integralmente no Diário On Line e neste site Taquiprati.
Querido mundo muçulmano,
Sou um dos teus filhos desgarrados que te olha de fora e de longe – aqui deste país, a França, onde tantos dos teus filhos vivem atualmente.  Contemplo-te com meus olhos implacáveis de filósofo que se nutriu, desde a infância, do sufismo (taçawwuf) e também da mentalidade ocidental. Daqui te observo, a partir da minha condição de barzakh – uma espécie de istmo entre os dois mares do Oriente e do Ocidente.
E o que é que eu vejo? O que é que posso ver melhor do que os outros, justamente por te olhar de longe, recuado, com distanciamento? Vejo-te reduzido a um estado de miséria e sofrimento, o que me faz infinitamente triste, tornando ainda mais implacável a minha avaliação de filósofo. E isto porque eu te vejo parindo um monstro que tem a pretensão de se autonomear Estado Islâmico, mas que outros preferem denominar de demônio: DAESH.  O pior, no entanto, é que eu te vejo perdido – perdendo  teu tempo e tua honorabilidade –  ao não reconhecer que o monstro nasceu de tuas entranhas, de teus desnorteamentos, de tuas contradições, do teu eterno descompasso entre o passado e o presente, de tua permanente incapacidade para encontrar um lugar na civilização humana.
Como reages diante de semelhante monstro? Com um invariável discurso repetitivo, tu exclamas: “Esse aí não sou eu, isso não é o Islã”. Negas que os crimes desse monstro tenham sido cometidos em teu nome (hashtag#NotInMy Name). Ficas indignado ante tamanha desumanidade, te insurges contra a usurpação de tua identidade pelo monstro e, certamente, tens razão de fazê-lo.
É indispensável que requeiras diante do mundo inteiro, em alto e bom som, que o Islã denuncie a barbárie. Mas isso é ainda insuficiente. Não basta se refugiar numa reação de autodefesa sem assumir também, principalmente, o compromisso da autocrítica. Num momento histórico como esse, tu te limitas a te indignar e perdes a ocasião excepcionalmente propícia para te questionar. E como sempre, tu acusas em vez de assumir tua própria responsabilidade: “Parem, vocês ocidentais e todos aqueles que são inimigos do Islã, de nos associar a esse monstro. O terrorismo não tem nada a ver com o Islã, com o verdadeiro Islã, o bom Islã não significa guerra, mas paz”.
Escuto e compreendo esse grito de revolta que aflora em ti, oh meu querido mundo muçulmano. Sim, tens razão. Como toda e qualquer revelação sagrada do mundo o Islã criou, ao longo de sua história, os ideais de Beleza, Justiça, Consciência, Bondade, e iluminou resplendosamente o ser humano no caminho dos mistérios da existência… Aqui no Ocidente, eu advogo, em cada um dos meus livros, para que essa sabedoria do Islã e de todas as religiões não seja esquecida e muito menos desprezada.
No entanto, do lugar distante em que me encontro, vejo ainda outra coisa – que tu não sabes ou não queres ver. E isso me leva a pensar a questão que é central: por que esse monstro roubou o teu rosto, porque esse monstro ignóbil foi escolher logo o teu rosto e não outro? Por que se apropriou da máscara do Islã e não outra? É porque, na realidade, por trás desta imagem do monstro se esconde um enorme problema, que tu não estás disposto a encarar de frente. No entanto, é preciso que tenhas coragem para isso.
Esse problema reside nas raízes do mal. De onde vem os crimes do pretenso “Estado Islâmico”? Vou te dizer, meu amigo. Isso não vai te agradar, mas é meu dever de filósofo te advertir. As raízes desse mal que deforma tua face estão em ti mesmo, o monstro foi gerado no teu próprio ventre, o câncer reside em teu próprio corpo. E tuas entranhas doentias continuarão a parir, no futuro, novos monstros piores ainda que esse aqui, enquanto durar tua recusa em encarar essa verdade de frente, enquanto persistir a tua demora em admitir e a atacar, enfim, o mal pela raiz.
Quando afirmo isso, até mesmo os intelectuais ocidentais tem dificuldade em aceitar: é que a maioria deles já esqueceu qual é o poder de uma religião – para o bem e para o mal, na vida e na morte – de tal forma que eles me contestam: “Não, o problema do mundo muçulmano não é o Islã, nem a religião, mas a política, a história, a economia, etc”. Vivem em sociedades tão laicizadas que nem sequer lembram mais que a religião pode ser o coração do motor de uma civilização humana. E que o futuro da humanidade depende não apenas de amanhã solucionar a crise econômica e financeira, mas sobretudo, de forma muito mais profunda, de equacionar a crise espiritual sem precedentes que atormenta toda a humanidade. Será que nós saberemos nos juntar em escala planetária para enfrentar este desafio fundamental? A natureza espiritual da espécie humana tem horror ao vazio e se não encontra nada de novo para preenchê-lo, ela o fará amanhã com religiões cada vez mais desligadas do presente e da mesma forma que o Islã passarão, então, a produzir monstros.
Vejo em ti, oh mundo muçulmano, forças imensuráveis prestes a se erguer para contribuir com o esforço mundial de inventar uma vida espiritual para o século XXI. Encontro em ti, apesar da gravidade da tua doença, apesar da extensão das trevas do obscurantismo na qual querem te submergir integralmente, uma multidão extraordinária de mulheres e homens que estão dispostos a reformar o Islã, a reinventar sua natureza ultrapassando suas configurações históricas, para dessa forma participar da renovação completa da relação que até então a humanidade mantinha com os seus deuses! É a todos esses, muçulmanos e não-muçulmanos que, juntos, sonham com uma revolução espiritual, a quem eu destino meus livros. Para lhes dar, com minhas palavras de filósofo, confiança na conquista de suas esperanças.
Encontramos na comunidade de muçulmanos – a Oumma – mulheres e homens evoluídos que carregam a visão do futuro espiritual do ser humano. Mas ainda não são bastante numerosos e suas vozes não são suficientemente fortes. Todos eles, cuja lucidez e coragem eu saúdo, perceberam com clareza que é o estado geral de doença enraizada do mundo muçulmano que explica o nascimento de monstros terroristas sob os nomes de AlQaida, Al Nostra, AQMI ou “Estado Islâmico”. Eles compreenderam que não são esses os sintomas mais graves e mais visíveis de um enorme corpo enfermo, cujas doenças crônicas são as seguintes:
Impotência para criar democracias duráveis nas quais, ante os dogmas da religião, a liberdade de pensamento seja reconhecida como direito moral e político;
Enclausuramento moral e social em uma religião dogmática, engessada, e às vezes totalitária;
Dificuldades crônicas para melhorar a condição da mulher em busca de igualdade, responsabilidade e liberdade;
Incapacidade para separar de forma clara o poder político do controle autoritário da religião;
Incompetência para implantar o respeito, a tolerância e o reconhecimento verdadeiro diante da diversidade de crenças e das minorias religiosas.
Será que tudo isto é culpa do Ocidente? Quanto tempo valioso, quantos anos cruciais tu vais continuar perdendo, oh querido mundo muçulmano, com tua acusação tacanha na qual nem tu mesmo acreditas mais e atrás da qual tu te escondes para continuar mentindo a ti mesmo? Se te critico com tanta aspereza, não é porque sou um filósofo “ocidental”, mas porque sou um dos teus filhos com consciência de tudo aquilo que perdeste da tua extinta grandeza, transcorrida há tanto tempo que acabou se tornando um mito. Esse é o momento de te revelar que, a partir sobretudo do século XVIII, tu foste incapaz de responder aos desafios do Ocidente.
Ou oito ou oitenta. Ou te refugiaste de forma imatura e letal no passado, retrocedendo ao wahhabismo intolerante, obscurantista e ultraconservador, que continua a devastar quase tudo que existe dentro de tuas fronteiras – um wahhabismo que tu disseminas a partir dos teus lugares sagrados situados na Arábia Saudita, como um câncer que corrói o teu próprio coração! Ou então tu te espelhaste no que existe pior do Ocidente, estimulando, como ele o fez, os nacionalismos e um modernismo que não passa de uma caricatura da modernidade. Estou falando tanto do delírio de consumo desenfreado quanto desse desenvolvimento tecnológico incompatível com a tradição religiosa que faz das tuas “elites” podres de rica do Golfo apenas vítimas cúmplices dessa doença, agora mundial, que é o culto ao deus dinheiro.
O que é que hoje tu tens de admirável, meu amigo? O que é que existe em ti capaz de despertar o respeito e a admiração de outros povos e de outras civilizações do planeta? Onde estão os teus sábios? Tens ainda sabedoria para oferecer ao mundo? Em qual lugar encontramos teus grandes homens? Quem são os teus Mandela, os teus Gandhi, os teus Aung San Suu Kyi?
Onde encontramos teus notáveis pensadores e teus intelectuais, cujos livros deviam ser lidos no mundo inteiro, como nos tempos dos matemáticos e dos filósofos árabes ou persas que eram referência numa área que ia da Índia até a Espanha? Na realidade, por trás dessa certeza que sempre exibes a respeito de ti mesmo, te tornaste tão fraco e tão impotente, que já não sabes mais quem és e nem para onde queres ir, o que te deixa também infeliz e agressivo.
Tu teimas em não escutar aqueles que te convidam a mudar querendo, enfim, te libertar da dominação que outorgaste à religião durante a vida inteira. Optaste por acatar Mohammed como profeta e rei. Escolheste definir o Islã como religião política, social, moral, reinando de forma tirânica sobre o Estado e até sobre a vida civil, invadindo as ruas e os lares e penetrando profundamente até mesmo em cada consciência. Decidiste acreditar no dogma de que o Islã significa submissão, quando o próprio Alcorão decreta que “na religião não existe opressão” (La ikraha fi Dîn). Fizeste deste apelo à liberdade o império do despotismo. Como uma civilização pode trair a esse ponto seu próprio texto sagrado?Chegou a hora de a civilização islâmica instaurar essa liberdade espiritual – a mais sublime e a mais difícil de todas – no lugar de todas as leis inventadas por gerações de teólogos.
Inúmeras vozes que tu não queres escutar ressoam hoje na Oumma e se rebelam contra esse escândalo, denunciando o tabu de uma religião autoritária e dogmática, que só beneficia seus chefes interessados em perpetuar indefinidamente sua dominação. A ponto de muitos fiéis internalizarem uma cultura de submissão à tradição e aos “mestres da religião” (imams, muftis, shouyoukhs, etc) e por isso sequer compreendem quando lhes falamos de liberdade espiritual e não admitem que ousemos expressar escolhas pessoais diantes dos “pilares” do Islã.
Para eles, tudo isso constitui uma “linha vermelha”, algo tão sagrado que não tem coragem de admitir o direito de sua própria consciência de questionar e criticar. Em muitas famílias e em muitas sociedades muçulmanas se confunde espiritualidade e subserviência, o que está naturalizado em suas consciências desde a mais tenra idade. Lá, a pobreza da educação espiritual é tal que tudo aquilo que se refere direta ou indiretamente à religião continua sendo algo sobre o qual jamais se discute.
Ora, isso, evidentemente, não é imposto pelo terrorismo de alguns loucos ou por esquadrões de fanáticos recrutados pelo Estado Islâmico. Não. Esse problema é infinitamente mais profundo e infinitamente mais complexo. Mas quem percebe isso e está disposto a falar? Quem quer escutar? Silêncio sobre o assunto no mundo muçulmano. Já as mídias ocidentais abrigam uma legião de especialistas do terrorismo que diariamente contribuem para agravar a miopia geral.
Não te ilude, meu querido muçulmano, acreditando e espalhando a crença de que quando o terrorismo islâmico for derrotado, o Islã terá resolvido seus problemas.  Pois tudo o que acabo de evocar aqui – uma religião tirânica, dogmática, formalista, machista, conservadora, retrógrada, que lê a Bíblia ao pé da letra – é muitas vezes, nem sempre, mas quase sempre, o Islã habitual, o Islã cotidiano, que sofre e faz sofrer muitas consciências, o Islã arcaico e do passado, o Islã deformado por todos aqueles que o usam politicamente, o Islã que no final, ainda e sempre, acaba sufocando as primaveras árabes e a voz de todos esses jovens que clamam por mudanças.
Quando vais, afinal, fazer a verdadeira revolução, meu querido muçulmano? Essa revolução que nas sociedades e nas consciências irá sintonizar definitivamente religião com liberdade, uma revolução sem retorno que reconhecerá a religião como um fato social à semelhança de tantos outros no mundo e cujos privilégios exorbitantes não gozam mais de qualquer legitimidade.
É evidente que em teu imenso território encontramos pequenas ilhas de liberdade espiritual: famílias que transmitem um Islã de tolerância, de opção pessoal, de aprofundamento espiritual; espaços sociais onde a cadeia da prisão religiosa está aberta ou semi-aberta; lugares onde o Islã ainda proporciona o melhor de si mesmo, isto é, uma cultura da partilha, da dignidade, da busca do saber, e uma espiritualidade à procura do território  sagrado onde se reencontram o ser humano e essa substância última que chamamos Allâh.
Vivem na Terra do Islã e em todas as comunidades muçulmanas do mundo seres fortes e livres, mas que continuam condenados a viver sua liberdade sem garantia, sem reconhecimento de seus direitos essenciais, correndo riscos e perigos diante do forte controle social e mais especificamente do policiamento religioso. Jamais, em qualquer momento, o direito de dizer “eu escolhi o meu Islã”, ou “eu tenho minha relação pessoal com o Islã” foi reconhecido pelo “Islã oficial” dos dignatários. Esses últimos, ao contrário, se apressam em prescrever por decreto que “a doutrina do Islã é uma só” e que “a obediência aos fundamentos do Islã é o único caminho correto” (sirâtou-l-moustaqîm).
Tal recusa ao direito à liberdade diante da religião é uma das raízes do mal que tu sofres, oh meu caro mundo muçulmano, um dos ventres obscuros onde crescem os monstros que alimentaste nos últimos anos, sob o olhar aterrorizado do mundo. Essa religião inflexível impõe a sociedades inteiras uma violência insuportável. Ela encarcera muitas de tuas filhas e de teus filhos na masmorra de um Bem e de um Mal, de um lícito (halâl) e de um ilícito (harâm) sobre o qual ninguém tem direito de opinar, mas ao qual todos se submetem.  Ela aprisiona vontades, condiciona mentes, impede ou frustra qualquer escolha pessoal de vida. Nos muitos domínios sob tua jurisdição, tu associas ainda religião com violência – contra mulheres, contra “infiéis”, contra minorias cristãs ou qualquer outra, contra pensadores e espíritos livres, contra rebeldes, de tal maneira que a religião associada à violência acaba confundindo os mais desequilibrados e os mais frágeis de teus filhos na monstruosidade do jihad.
Portanto, não te espantes, não finge que foste surpreendido – eu te peço – quando demônios como o pretenso Estado Islâmico roubam a tua identidade, uma vez que monstros e demônio só roubam rostos já deformados por caretas.
E se queres saber como não parir mais tais monstros, eu vou te dizer: é bastante simples e muito difícil ao mesmo tempo. É preciso que comeces a reformar toda a educação que dás às tuas crianças, que reformes tuas escolas e todo o sistema educativo, além de cada um dos lugares do saber e do poder. Que tais reformas sejam direcionadas segundo os princípios universais (embora não sejas o único a transgredí-los ou a persistir na ignorância): a liberdade de pensamento, a democracia, a tolerância, o direito de expressão para todas as diversas visões do mundo, para todas as crenças, a igualdade dos sexos e a emancipação das mulheres de toda tutela masculina, a reflexão e a cultura crítica do religioso nas universidades, na literatura e na mídia. Tu não podes mais recuar, não podes mais fazer por menos. Não podes mais deixar de fazer uma revolução espiritual absolutamente completa. Essa é a única forma que tens para impedir a geração de monstros e se tu hesitares, logo serás devorado por seu poder de destruição. Quando concluires essa tarefa colossal – em lugar de te refugiares na má fé e na cegueira voluntária, aí então nenhum monstro abjeto poderá te roubar a face.
Querido mundo muçulmano, sou apenas um filósofo e para variar alguns dirão que todo filósofo é herege. No entanto, a única coisa que busco é contribuir para restaurar de novo o resplendor das luzes – o nome com que me batizaste é que me autoriza a fazê-lo, Abdennour, “Servidor da Luz”.  
Eu não seria tão implacável aqui nessa carta se eu não acreditasse em ti. Como diz o provérbio francês: “quem ama muito, corrige muito”. Por outro lado, todos aqueles que passam a mão na tua cabeça – que encontram sempre desculpas para te justificar, que querem fazer de ti um coitadinho, ou que não identificam tua responsabilidade nos acontecimentos – todos eles, em realidade, não estão te prestando qualquer ajuda. Acredito em ti, creio na tua contribuição para fazer do nosso Planeta um universo ao mesmo tempo mais humano e mais espiritualizado. Salâm. Que a paz esteja contigo.
P.S. Tradução: José R. Bessa Freire
Agradeço a indicação do texto a André Cauty, ex-professor de matemática no Sahara Argelino e professor de epistemologia e história das ciências na Universidade de Bordeaux; a Anne Marie Milon Oliveira, professora da UERJ e a meus amigos luteranos do COMIN, especialmente a Hans Trein, agradeço a interlocução e a troca de figurinhas.

  

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CHARLIE – O DEBATE CONTINUA

O repúdio unânime que se expressou contra o assassinato de jornalistas do Charlie Hebdo não impede que a controvérsia sobre as posições do jornal continue fervendo.

A hipocrisia que reúne Netanyhau, Abbas, Merkel, ditadores africanos e presidentes eleitos na grande manifestação de domingo não pode deixar de ser notada. E, certamente, a apropriação, pela extrema direita europeia, dos acontecimentos não pode ser deixada de lado.

Essa apropriação é, certamente, o lado mais trágico disso tudo. Marine Le Pen, seu papa e consortes espalhados pelo continente estão mais raivosos que nunca, agitando contra a imigração e a presença de muçulmanos na Europa. Convenientemente esquecidos que a maioria deles veio para fazer os trabalhos que os europeus não queriam mais quando estavam em pleno boom econômico. E que esses imigrantes são, em sua grande maioria, provenientes de países que sofreram os males da colonização.

Como já disse, a posição do Charlie Hebdo repousa em uma tradição francesa que, ela mesma está ameaçada. A iconoclastia é um componente importantíssimo da cultura francesa, e se expressa no exercício da liberdade de expressão. Legislação mais recente tenta por limites a isso. E a auto-censura do “politicamente correto” não é um fator desprezível.

Abaixo, links para artigos vários que debatem aspectos desses problemas:

ALIANÇA INTERNACIONAL DE EDITORES INDEPENDENTES APOIA O CHARLIE HEBDO. Aqui e Aqui.

NA FEIRA DE LIVROS DE DOHA, ESCRITORES E EDITORES DEBATEM O “JE SUIS CHARLIE”. Aqui.

E, para lembrar dois casos antigos, o NY Times publicou hoje, dia 14 de janeiro, o obituário de Al Bendich, que foi advogado de defesa de dois casos importantíssimos relacionados com a liberdade de expressão nos EUA. O Julgamento de Ferlinghetti por haver publicado o poema Howl, de Allen Ginsberg, e o de Leny Bruce, um comediante de San Francisco acusado de dizer obscenidades no espetáculo.

Os dois julgamentos são considerados como marcos na defesa dos direitos civis nos EUA, e em particular do direito de liberdade de expressão. Aqui.

Sérgio Augusto, no Portal do Estadão na tarde de sábado (deve sair na edição impressa de domingo), conta o episódio do cartonista e humorista Siné, que brigou com o Charlie Hebdo.

sine

E meu amigo José Bessa, que morou vários anos em Paris, produz mais um artigo ótimo no seu TaquiPrati.

 

 

E CHARLIE É O QUÊ, AFINAL?
José Ribamar Bessa Freire
18/01/2015 – Diário do Amazonas

 

Depois do assassinato de jornalistas doCharlie Hebdo, uma guerra discursiva explodiu na mídia e nas redes sociais com disparos de palavras que felizmente não matam um prato de feijão, só trucidam, às vezes, a sintaxe e a razão. De um lado, o exército “Eu-sou-Charlie” e, de outro, “Eu não-sou-Charlie”, ambos comandados por insignes “generais”.
Nesta guerra incruenta, a questão central, no entanto, não é to be or not to be, mas o que cada lado entende por Charlie. That is the question. A pergunta que o psicanalista Contardo Calligaris fez em sua coluna na Folha de SP é pertinente:
– Sou Charlie. E Charlie é o quê?
Charlie Hebdo é um jornal com charges “perigosas, criminosas e de péssimo gosto“, responde a milícia anticharlista, comandada pelo teólogo Leonardo Boff, que postou artigo “Je ne suis pas Charlie”, de autoria do jornalista Rafo Saldanha, mas atribuído inicialmente ao próprio Boff e depois ao padre Antonio Piber e cujo conteúdo foi de qualquer forma comentado e referendado pelos três.
Leitor assíduo e entusiasmado que fui por muitos anos do Charlie Hebdo, me autonomeio correspondente de guerra para enviar notícias do front de batalha e cobrir os ataques feitos pelos dois exércitos.
A santíssima trindade Boff-Piber-Saldanha, responsável pela difusão do citado artigo, embora criminalize as charges, lamenta o atentado que “poderia ter sido evitado”, se logo “no primeiro excesso” a justiça francesa tivesse punido o jornal. “Mas isso é censura, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura”, confirma o trio justificando que “nem toda censura é ruim“.
Existe, portanto, a possibilidade de termos um Index Librorum Prohibitorum do bem – segundo a avaliação de quem já nele figurou. Essa noção de “censura boa” capaz de proteger vidas acabou dando munição aos atiradores de ralé situados nas trincheiras dos blogs e do facebook, que atacaram com rajadas de adjetivos desqualificativos o Charliezorum Hebdomadorum.
Humor cristão
Um sargento da tropa anticharlista, Jonathan Nemer, que se apresenta como “humorista cristão” – seja lá que diabo isso signifique – critica os desenhos da revista “que ridicularizam a fé de diversas religiões, incluindo o cristianismo“. Alguns soldados rasos apoiados na declaração do Papa Francisco – “se xingar minha mãe, espere um soco” – denominaram as charges de “provocação irresponsável” e de “grave incompetência” dos cartunistas que “fizeram por merecer”. Acusaram Charlie de “islamófobo especializado em blasfêmias”.
Esses – digamos assim – argumentos, foram desmontados por Luís Fernando Veríssimo, Contardo Calligaris, Gregório Duvivier e Miguel do Rosário entre outros.
Para Veríssimo, a alegação de que “os cartunistas foram longe demais é o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada estava pedindo“. Ele define “blasfêmia” como uma afronta ao sagrado. “Assim, a verdadeira discussão não é sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. Quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo“.
O mesmo tipo de armamento foi usado por Contardo Calligaris (Por que eu sou Charlie?) para rejeitar a acusação de islamofobia, ele prefere a classificação de cretinofobia.
– “Charlie Hebdo é uma publicação cretinofóbica, porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente. Por isso seria exato dizer que para Charlie Hebdo nada é sagrado. Nada é sagrado para todos, SALVO o princípio de que nada deve ser sagrado para todos. O que não é pouca coisa”.
Para Gregório Duvivier, o que define o humor é justamente a brincadeira com o sagrado. Já que tudo é sagrado para alguém no mundo – a maconha, a vaca, a santa de madeira, o Daime, Jesus e Maomé – tudo merece respeito e falta de respeito.
Portanto, “os chargistas que mesmo ameaçados não baixaram o tom, não devem ser tratados como pivetes malcriados que fizeram por merecer, mas como artistas brilhantes que morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é continuar lutando por ela, sem fazer concessões nem perder aquele ingrediente essencial: a falta de respeito pelo ódio“.
É isso. O semanário Charlie Hebdo é um pequeno jornal alternativo francês que, no melhor espírito anárquico e irreverente de maio de 1968, sempre sacaneou o poder e as instituições que tem orçamento e hierarquia: estado, igrejas, mídia, bancos, academias, partidos políticos, forças armadas, polícia. Nem eles próprios escapam, riem de si mesmos. Wolinski declarou que depois de morto e incinerado, queria que suas cinzas fossem jogadas na privada de sua casa para que ele, de um lugar privilegiado, pudesse contemplar o fiofó da amada.
Humor corrosivo
Pornográfico, desabusado e crítico, libertário e libertino, seu humor ácido e corrosivo, seu espírito satírico e gozador, seu atrevimento, sua insolência e agressividade, algumas vezes – confesso – me escandalizaram. Lembro de uma capa em que aparece Marine Le Pen, deputada racista de extrema-direita, de quatro, sendo enrabada. Na outra, se jura que todo racista tem pinto pequeno. Tive de esconder de minha mãe o exemplar que exibia na capa foto da gruta de Lourdes, na qual um soldado uniformizado debochava da Virgem Maria, que estaria menstruada. Passou dos limites?
– Existe limite para o humor? – pergunta Duvivier, que imediatamente dá a resposta:
“O limite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido”.
Num belo artigo em que justifica “porque sou Charlie”, Miguel do Rosário nos informa que “as artes francesas sempre se notabilizaram pelo escândalo, pelos excessos, pelo enfrentamento atrevido a toda forma de autoridade, no Estado, na Igreja, nas convenções sociais”. No entanto, os “leigos” em cultura francesa classificam de xenofobia e islamofobia, as charges porque elas são agressivas. “Mas não é verdade – escreve Miguel – os desenhos de Charlie são herdeiros da tradição estética francesa voltada para a escatologia, o excesso, o escândalo”.
Ele cita trechos de Rabelais, mas podia ampliar a longa lista com Voltaire, Marat, Sade e tantos outros, além da forte tradição anticlerical. Lembra ainda que na França não é crime blasfemar, zombar das religiões e de seus símbolos. Os excessos punidos por lei são a difamação contra pessoas, o racismo, o antissemitismo, a incitação à violência ou ao ódio, o que levou algumas vezes o próprio Charlie Hebdo a ser condenado pelos tribunais. O “normal” é quem se sentir ofendido recorrer ao tribunal e não ao soco, às bombas ou à censura.
Portanto, quando alguém afirma “eu sou Charlie” não está necessariamente assinando embaixo de todas as charges. Está se solidarizando com jornalistas assassinados, está defendendo a liberdade de expressão em qualquer parte do mundo.
Charlie são os dois mil mortos nos últimos dias na Nigéria em atentados terroristas cometidos por extremistas. Charlie é Amarildo morto pela polícia carioca. Charlie são os milhares de membros da minoria tamil massacrados no Sri Lanka, os muçulmanas trucidados pelo Emirado Islâmico, os negros eliminados pela polícia dos Estados Unidos, os presos de Guantánamo, os palestinos, os judeus, os povos indígenas violentados pela invasão de suas terras, com seus líderes assassinados.

Embora algumas charges do Charlie Hebdo tenham me escandalizado, não gostaria de viver numa sociedade em que elas fossem proibidas. Por isso, eu já fui Boff, quando ele, censurado e perseguido pelo Vaticano, constava no Index. Hoje, chuí Charlie.

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Horto da memória – Kamélia e Peteleco

Meu irmão, Pedro Lucas Lindoso, gosta de rememorar coisas da infância e juventude dele (eu sou mais velho…)

Publica crônicas no Jornal do Comércio, de manaus.

Na última, lembra dois “personagens” que, surpreso, constatei que ainda circulam lá pela terra dos Barés. Pensava que não existiam mais. Mas continuam, e com seu leve toque de politicamente incorreto.

Eis a crônica.

OS BONECOS SÃO ETERNOS

Quem foi menino em Manaus, na década de sessenta, com certeza tem nas lembranças afetivas, a figura de dois bonecos emblemáticos e icônicos da cultura popular da cidade de Manaus: Peteleco e Kamélia.

O Peteleco é um boneco criado pelo ventríloquo Oscarino Varjão que foi muito amigo de meu saudoso pai, José Lindoso. Peteleco é um neguinho muito querido, respondão, malcriado e dizia tudo que a gente gostaria de dizer e não podia.

Naquele tempo, menino era tratado como menino. Tolice era inibida com palmatória e cachuleta. Para quem não sabe o que é cachuleta, trata-se de levar uma forte pancada com o dedo médio na orelha, para ficar esperto e não fazer mais tolice.  Aliás, cachuleta também se chama peteleco, principalmente no sudeste do Brasil.

Posso dizer que o Peteleco foi um dos meus melhores amigos de infância. Toda vez que ele se apresentava no auditório do SESC na Rua Henrique Martins, onde morávamos, eu não perdia. Considero o Peteleco como um dos meus diletos companheiros da Rua Henrique Martins.

Soube que o Peteleco também faz shows para adultos atualmente. Fico feliz em saber que o Peteleco é um garoto cinquentão como eu.

Propaganda do ventríloquo e seu boneco.

Propaganda do ventríloquo e seu boneco.

Há poucos meses, era domingo e eu fui assistir o Peteleco, na Casa de Música Ivete Ibiapina, na Rua 10 de Julho. Após o show, conversei com Oscarino e ele lembrou-se de meu pai com carinho e deferência.
Disse a ele que conhecia o Peteleco desde menino e ele ficou feliz. Ah! E ainda tive o privilégio de “conversar” com o próprio Peteleco. Foi uma alegria para mim.

O outro boneco, digo boneca, é a Kamélia. Ela sempre chega para a abertura do carnaval de Manaus.

Durante certo tempo eu tinha medo da Kamélia. Um verdadeiro pavor.  Explico: a boneca foi inspirada na marchinha Jardineira, na qual a Kamélia “caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu”. Na minha cabeça de menino medroso, a Kamélia seria uma “visagem”, uma assombração.

 

A Kamélia é recebida com honras no começo do ano, abrindo os "folguedos de Momo", como diziam os vetustos periódicos.

A Kamélia é recebida com honras no começo do ano, abrindo os “folguedos de Momo”, como diziam os vetustos periódicos.

Como todo curumim, eu adorava ver avião. Ir ao Aeroporto Ponta Pelada era um passeio irrecusável. Mas quando soube que naquele dia iríamos ao aeroporto para a chegada da Kamélia, o medo tomou conta de mim.
O fato é que a Kamélia chegava de avião, vindo provavelmente da Bahia, e a população ia “buscá-la” no antigo Aeroporto de Ponta Pelada. Era um acontecimento. Mas e o medo de alma penada?
Foi então que me enchi de coragem e perguntei a Darinha, que morava lá em casa desde sempre: Darinha, os bonecos morrem? E então ela me disse:
– Não meu filho, bonecos não morrem. Os bichos, as pessoas, as plantas morrem, mas os bonecos não morrem nunca.
Sempre acreditei na Darinha. E lá fui eu, feliz da vida, ao aeroporto de Ponta Pelada receber a Kamélia, vindo diretamente de Salvador para Manaus, vestida de baiana, para alegrar os manauaras.
E todo ano ela chega. Agora, procedente do Rio de Janeiro. E o Peteleco continua por aí.
E não é que é verdade? Darinha tinha razão. Os bonecos não morrem nunca. São eternos.

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Serei eu Charlie?

Nos dias seguintes ao atentado, ao lado das manifestações de solidariedade e pesar pelos assassinatos, apareceram também artigos lembrando o racismo, a islamofobia que assola a Europa (não apenas lá, é claro), e quem lembrasse também que o PC (a droga do politicamente correto, aussi dit bon sense) e até o bom gosto não permitiriam que as caricaturas do Charlie Hebdo circulassem impunemente.

Não cheguei a ler nenhum que afirmasse que as caricaturas “justificavam” a raiva dos jovens terroristas. Mas vários levantaram a questão de que o ambiente racista, e particularmente islamofóbico, na França de hoje, criava esse “caldo de cultura” de ressentimentos que, em última instância, levou à tragédia.

Não concordo.

Vou tentar examinar mais de perto.

Um dos mais elaborados artigos que li foi escrito por Zuni, que mantem o blog Descolonizações. O argumento de Zuni se desdobra em vários aspectos.

Zuni começa assim estruturando seu argumento: “Entretanto, não quero falar agora sobre as divergências de opinião, e sim sobre o consenso, expresso no slogan “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan é atrelado à ideia de que o que ocorreu ontem na França implica um atentado contra a liberdade de imprensa e valores democráticos ocidentais; implica dizer que toda imprensa é livre pra publicar irresponsavelmente qualquer conteúdo; implica dizer que o direito de zombar de uma religião é o mesmo que lutar pelo estado laico; e implica, principalmente, que o ataque foi simplesmente resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso diante de uma critica “ácida e sagaz”, excetuando-se todo o contexto de marginalização e discriminação da comunidade muçulmana na França. Principalmente, implica ignorar à que se propõe e quais os efeitos dessas charges no contexto político-ideológico de um país com níveis alarmantes de racismo”.

A questão das piadas racistas e homofóbicas é amplamente tratada. Cita o caso de seus pais, quando o macho da casa repetia incansavelmente piadas machistas para a mãe, que sorria amarelo. Menciona o notório caso do Gentili e seu racismo e machismo que se expressam repetidamente. Mas, principalmente, assinala como o preconceito contra os imigrantes, e particularmente a islamofobia, grassa na Europa e na França, e se torna componente importantíssimo no discurso da direita (desde o “moderado” Sarkozy até a babenta Marine Le Pen).

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