Glotocídio, glotocronologia e alguns outros blás blás blás

Quando estudava Antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru (a universidade mais antiga das Américas, porque os espanhóis foram mais cruéis, mas menos estúpidos que os portugueses e criaram várias universidades por aqui), tive aulas com um linguista, Alfredo Torero, que ensinou algumas coias memoráveis.

Torero, aliás, era um personagem. Sofria de uma rara doença neurológica, que o impedia de sentir dor. A dor, esse fenômeno desagradável, é um sinal de alarme emitido por nosso organismo, informando que alguma coisa vai mal em nosso corpo – ou com o nosso corpo -, como é o caso da tortura, à qual Torero também foi submetido. O professor Torero foi um pioneiro na linguística quéchua em geral, e a linguística andina em particular.

Uma das coisas que aprendi com Torero foi o funcionamento de glotocronologia. É uma ciência quase esotérica, mas importantíssima. É a arqueologia da separação das línguas. A cada mil anos supõe-se que 14% das palavras básicas de uma língua sofrem modificações fonéticas, e a estatística comparando universos fonético-vocabulares de dois idiomas aparentados pode estimar o momento da separação desses dois a partir de um tronco comum. Evidentemente não é uma ciência perfeita, mas uma pista importantíssima para conhecer a evolução de famílias línguisticas, a partir dos diferentes idiomas atualmente existentes dessa família.

As aulas do Torero – que morreu no exílio depois que foi acusado pela polícia peruana de ser simpatizando do Sendero Luminoso – me vieram á mente quando li a coluna do meu amigo José Bessa essa semana, no Taquiprati. Bessa relata recente discussão sobre o ritmo do glotocídio que ocorre mundialmente. As línguas morrem, quando o penúltimo falante desse idioma morre, pois este não tem mais com quem conversar.

Além do fenômeno social, cultural e político da morte dos idiomas, o glotocídio dificulta ainda mais as pesquisas em busca da ur-linguagem, aquela tal língua original dos primeiros homens.

Mas, é melhor deixar o Bessa contar a história de vez.

Taquiprati

 

CORTEM A LÍNGUA DELES
José Ribamar Bessa Freire
23/11/2014 – Diário do Amazonas

 

A cada quinze dias acontece uma morte. Dizem que cortam a língua da vítima com requintes de crueldade. O cadáver desaparece misteriosamente sem deixar vestígio. Daqui até o natal haverá mais dois assassinatos em algum lugar do mundo, segundo previsão do investigador irlandês David Crystal, que busca pistas para explicar tantos crimes. Nenhum organismo policial, nacional ou estrangeiro, identificou até hoje os assassinos. Um seminário realizado em Foz do Iguaçu (PR), nesta semana, reuniu autoridades e especialistas da América Latina para discutir, entre outras questões, como evitar essas mortes consideradas crime contra  a humanidade.
Parece que os assassinos se inspiram em Genghis Khan que no séc. XIII, de forma indulgente, poupava a vida dos prisioneiros de guerra a quem deixava retornar em liberdade às suas casas. No entanto, para impedir que batessem com a língua nos dentes e passassem informações ao inimigo, cortava suas línguas. Daí a origem do provérbio mongol:
  – Quem tem língua cortada não fala.
A mutilação praticada pelo exército mongol continua sendo feita simbolicamente no planeta. O crime é justamente esse: o glotocídio. A cada quinze dias morre o ultimo falante de uma das 6.700 línguas faladas atualmente em 193 países. Com ele desaparece para sempre mais uma língua.
Com o objetivo de criar estratégias para fortalecer as línguas ameaçadas na América Latina, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Ministério da Cultura organizaram nesta semana, de 17 a 20 de novembro, em Foz do Iguaçu, um encontro de autoridades e de alteridades no Seminário Ibero-americano da Diversidade Linguística, que reuniu mais de 400 pessoas comprometidas com a luta pelos direitos linguísticos das minorias. Participaram dos debates linguistas, historiadores, antropólogos, falantes de línguas indígenas e de línguas minoritárias de migração, além da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).
Durante o evento foi entregue o certificado das três primeiras línguas reconhecidas como referência cultural brasileira pelo IPHAN: o guarani – que é falado também em outros países do Mercosul, o Assurini do Trocará – língua falada nas margens do rio Tocantins (PA) e que quase desaparece afogada na hidroelétrica de Tucurui e o Talián – vinda com os migrantes do norte da Itália e que hoje é falada no sul do Brasil. Essas três línguas, depois de terem sido cuidadosamente documentadas, fazem parte agora do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL).
Línguas minorizadas
O reconhecimento de uma língua como referência cultural requer que ela seja falada em território brasileiro há pelo menos três gerações e que seus falantes solicitem ao IPHAN o pedido de inclusão no INDL, que é então analisado por uma comissão técnica interministerial. Esse caminho pode ser seguido por mais de 300 línguas faladas no Brasil, entre elas as línguas indígenas que são autóctones e estão aqui enraizadas e as línguas alóctones que vieram para o Brasil trazidas por migrantes. Das línguas indígenas apenas 11 têm acima de cinco mil falantes, o que significa que a maioria corre sério risco de extinção.
Essas línguas chamadas minoritárias foram minorizadas no processo histórico, ficando com número reduzido de falantes: apenas 5% da população do planeta. No entanto, elas constituem maioria expressiva se considerarmos a quantidade de línguas faladas no mundo inteiro por tais minorias, que representam 95% das línguas existentes no Atlas Linguístico Mundial, 15% das quais em continente americano. Portanto, os direitos linguísticos reivindicados se referem a uma minoria de falantes, mas também à maioria das línguas existentes no mundo que garantem a manutenção da glotodiversidade.
O que é, afinal, que se quer com a defesa da diversidade linguística? Já seria plenamente justificável lutar exclusivamente pelos direitos legítimos das minorias de continuarem pensando, cantando, amando, narrando, trabalhando e sonhando em suas línguas, mas essa luta ganha força quando sabemos que ela inclui a sobrevivência das próprias línguas, que só seus falantes podem garantir. Muitas espécies vivas de plantas e de animais que estão em perigo são conhecidas apenas por determinados povos cujas línguas – que produziram e armazenam tais conhecimentos – são consideradas moribundas e estão ameaçadas de extinção.
O linguista Aryon Rodrigues, depois de esboçar um panorama das línguas indígenas da Amazônia, concluiu que nelas se encontram fenômenos fonéticos, gramaticais, de construção do discurso e de uso das línguas, que não se encontram em línguas de outras partes do mundo. Daí a preocupação de mantê-las vivas. Essas línguas constituem, junto com o material arqueológico disponível, as pistas que melhor nos informam sobre a ocupação do território americano, datas e movimentos migratórios.
A sobrevivência das línguas ditas minoritárias interessa, portanto, não apenas aos seus falantes, mas ao conjunto da humanidade, pois está relacionada à preservação da biodiversidade. A diversidade linguística se torna assim tão vital para a sobrevivência da espécie humana quanto à diversidade biológica.
O glotocídio
Segundo David Crystal em seu livro “A revolução da linguagem” hoje, no planeta, ainda são faladas 6.700 línguas, mas a situação é dramática, porque em média, uma língua desaparece a cada duas semanas. Línguas morrem, o que é natural. O preocupante, para ele, é a velocidade da perda que está se fazendo sem precedentes na história escrita, decretando morte prematura, um glotocídio anunciado.
– Uma língua começa a desaparecer quando seus falantes são expulsos de suas terras ou quando a comunidade, por essa e por outras razões, perde o desejo de preservá-la” diz Crystal, para quem “se uma língua que nunca foi documentada morre, é como se jamais tivesse existido, porque não deixa qualquer vestígio. E uma língua morre – diz ele – quando o penúltimo falante desaparece, pois então o último já não tem mais ninguém com quem conversar”.
No seminário foi lembrado o drama recente de dois índios. Um deles – Tikuein –  único falante da língua Xetá, vivia na aldeia São Jerônimo, norte do Paraná com índios Kaingang e Guarani. Como estratégia para manter a língua viva, ele falava com o espelho e algumas vezes, caminhando pela aldeia, com um interlocutor fictício.
O outro caso foi registrado em 1978 por Zelito Viana no filme Terra de Índio. Ele gravou dona Maria Rosa que vivia no Posto Indígena Icatu (SP) e era ali a única falante da língua Ofaié Xavante. Quando a fez escutar o que ela mesma havia dito, dona Maria Rosa estabeleceu um  diálogo com o gravador, a quem perguntou por seu pai, por sua mãe e no final se despediu do aparelho dizendo: “Até logo, agora não falo mais porque estou rouca, viu?”.
A extinção é um risco permanente para as línguas minoritárias, principalmente as indígenas, devido ao reduzido número de falantes e ao uso social restrito. Não existe literatura escrita nessas línguas, nem espaço na mídia. Em cinco séculos, nessas condições, mais de 1.100 línguas indígenas desapareceram do mapa do Brasil e outras tantas do continente americano, levando com elas conhecimentos, cantos, rezas, narrativas, poesia, mitos, afetos.
O jesuíta João Daniel, no seu “Tesouro Descoberto do Rio das Amazonas”, com distanciamento crítico, conta como um missionário espancou uma índia do Marajó com bolos de palmatória dizendo: “Só paro de bater quando você disser “basta”, mas não na tua língua”. Ela calou. Suas mãos sangraram. Ele concluiu que as mulheres – a quem talvez o mundo deva a preservação de muitas línguas – eram mais resistentes que os homens, que migravam de uma língua a outra com mais frequência. Desta forma, centenas e centenas de línguas foram extirpadas a ferro e fogo.
Inventário de Línguas
O Inventário Nacional da Diversidade Linguística Brasileira (INDL) criado por Decreto Federal de 2010 tem o objetivo de conhecer e fortalecer as línguas minoritárias. Ele dialoga com a Carta Europeia sobre as Línguas Regionais ou Minoritárias (1992) e a Declaração Universal para a Promoção da Diversidade Cultural – Unesco (2005), além da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) de Barcelona, que surgiu das comunidades linguísticas e não dos Estados nacionais.
No Brasil, existem vários projetos destinados a identificar, documentar, reconhecer  e valorizar as línguas portadoras de referência à identidade como o PRODOCLIN, do Museu do Índio, que documentou cerca de 20 línguas e culturas indígenas e projetos do Museu Goeldi e do Laboratório de Línguas da UnB, entre outros.
Reconhecer essas línguas não é simplesmente aceitar formalmente a sua existência, mas considerá-las parte da nossa história. Como escreveu Bartolomeu Meliá, que fez a conferência final, “a história da América é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas”.
P.S. Mais informações sobre o seminário ver:
https://www.facebook.com/580632275396873/photos/a.598022100324557.1073741828.580632275396873/611702805623153/?type=1&theater
Mais detalhes sobre o homem que falava com o espelho em http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=21
Para não falar com o espelho ver:
 http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=876
Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , | Deixe um comentário

DO QUE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO DEVE SE ENVERGONHAR?

“A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da vida humana”

Machado de Assis

Memórias Póstumas de Brás Cubas

 

O “príncipe” anda indignado. Declarou ao O Globo que “sente vergonha como brasileiro” pelo que anda acontecendo na Petrobras.

O ex-presidente tem toda razão em andar envergonhado.

Só que anuncia a vergonha por razões erradas.

E tudo está no jornal, para quem lê com atenção.

O Estado de S. Paulo publicou na sexta-feira, dia 14 de novembro, um artigo de Cláudio Weber Abramo muito esclarecedor.

lava jato 1

Destaque 1:

A impunidade das empresas era total. O que mudou? “Essa situação jurídica só mudou com a sanção, em 2013, da Lei 12.846, em vigor desde o início de 2014”.

Que lei é essa?

Sua origem é uma mensagem do Poder Executivo ainda em 2010. Quem era o Presidente da República? Luís Inácio Lula da Silva. Foi sancionada em 2013, depois de tramitar da Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A resistência inicial do Congresso foi grande. O Deputado Carlos Zaratini (PT-SP) foi escolhido como relator do projeto e conduziu sua tramitação na Câmara. O Senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES). A mensagem do executivo, aliás, foi suscitada por acordo que o Brasil assinou na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), no qual os países membros se comprometeram a promover legislação anticorrupção.

Obediente ao compromisso assumido, o Presidente Lula enviou a mensagem, que tramitou por três anos no Congresso e foi sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff.

Destaque 2:

“A Petrobras conta com um esdrúxulo regulamento próprio para suas contratações, inventado durante o governo FHC. Justificado com os habituais argumentos de propiciar maior eficiência aos negócios da estatal, tal regulamento é um verdadeiro modelo daquilo que não se deve fazer quando se escreve regulações para licitações: confere enorme poder discricionário aos funcionários da empresa e torna praticamente impossível contestar suas decisões”.

Essa situação foi criada pelo Decreto n.º 2.745/98. 1998: Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

No entanto, o atual governo ainda está devendo. Depois de sancionar a Lei Anticorrupção, o acionista majoritário, que é a União, deveria tomar providências para que essa situação deixasse de existir.

Deveria também, discutir e promover uma ampla reformulação da Lei de Licitações. A atual Lei de licitações, a famigerada 8.666, de 1993 é, ela mesmo, uma excrecência. É cheia de detalhes complicados e inúteis, e parte do princípio que o vencedor será sempre quem oferecer o menor preço. Isso nem sempre é o correto, seja na administração pública ou na vida das pessoas. A combinação entre preço, qualidade do serviço, capacidade técnica para executá-lo é o desejável. A Lei foi sancionada pelo Itamar e referendada pelo Embaixador Rubens Ricúpero, o então Ministro da Fazenda. Que, não por casualidade, é o tal que foi filmado dizendo que “o bom se divulga e as sujeiras se escondem”.

Os remendos que foram sendo feitos não resolvem os problemas e acabam servindo para a velha vantagem dos espertalhões: cria-se dificuldades para vender facilidades.

Mas o que resta é que os governos que tomaram a primeira grande medida para o combate à corrupção foram os de Lula e Dilma.

PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA

Fernando Henrique Cardoso deveria andar permanentemente ruborizado de vergonha pela atitude de seu governo em relação à Procuradoria Geral da República. Seu nomeado, Geraldo Brindeiro, ficou conhecido como o Engavetador Geral da República. Como ressaltou Alípio Freire em artigo que já reproduzi neste blog, “Por sua vez, o ex-presidente Fernan­do Henrique Cardoso – O Príncipe dos Sociólogos (“Amore!!!”) e candidato ao título de Maior Reserva Imoral do País, com um requinte próprio dos aristocra­tas, chegou à sofisticação de ter um Engavetador Oficial de processos – o pro­curador-geral da República do seu go­verno, doutor Geraldo Brindeiro que, dos 626 inquéritos criminais que rece­beu, engavetou 242 e arquivou outros 217”.

Os tucanos têm mania de dizer que tudo que foi feito pelas administrações petistas é simplesmente “aperfeiçoamento” do que já existia. É assim com a Bolsa Família, execrada nos primeiros anos e hoje “simples evolução dos programas feitos pelo FHC”. O mesmo acontece com as instituições de controle da administração pública.

CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO

A CGU foi criada em 2003, no primeiro ano do governo do Presidente Lula, substituindo dois órgãos anteriormente existentes: a Secretaria Federal de Controle Interno, vinculada ao Ministério da Fazenda, e a Ouvidoria-Geral da União, vinculada ao Ministério da Justiça.

A “simples evolução” foi a criação de um órgão autônomo, com status de ministério, diretamente ligado à Presidência da República.

Os resultados, entre outros, são evidentes na quantidade de processos e procedimentos administrativos e judiciários promovidos pelo órgão. Já citei aqui um pequeno exemplo neste mesmo blog http://www.zagaia.blog.br/?p=153 : “de janeiro de 2003 a agosto de 2014, as expulsões punitivas de funcionários estatutários da administração federal somaram 4.979. É informação pública, no site da CGU, aqui.”

Fernando Henrique Cardoso realmente deveria se envergonhar de não ter feito nada disso.

POLÍCIA FEDERAL

A atuação da Policia Federal é outra questão para deixar vermelha de vergonha a cara do ex-presidente FHC. De uma rotina de nomeações políticas, transferência de delegados, falta de recursos para agir, a Polícia Federal passou a ter atuação constante, sistemática.

A esculhambação na PF era tamanha no governo FHC que a instituição era usada inclusive para resolver as pinimbas internas do governo. Ou já esqueceram do famoso caso Lunus, quando o Serra, candidato, usou a instituição para detonar a candidatura da “aliada” Roseana Sarney?

Se fosse apenas briga de compadres já era coisa séria. Infelizmente, até o que a PF tentou fazer de bom foi boicotado pelo falso-moralista Fernando Henrique Cardoso. Todas as tramoias da privataria tucana já foram relatadas pelo jornalista Amaury Ribeiro em seu livro, jamais contestado, A Privataria Tucana. Ribeiro nos brindou, recentemente, com uma informação adicional que diz respeito a um assunto da atualidade: a ligação do doleiro Alberto Yussef com esse processo.

“Nas 1.057 páginas que detalham todas as remessas feitas por doleiros por intermédio da agência do banco Banestado em Nova York está documentado o caminho que o caixa de campanha de FHC e do então candidato José Serra, Ricardo Sérgio Oliveira, usou para enviar US$ 56 milhões ao Exterior entre 1996 e 1997. O laudo dos peritos mostra que, nas suas operações, o tesoureiro utilizava o doleiro Alberto Youssef, também contratado por Fernandinho Beira-Mar para remeter dinheiro sujo do narcotráfico para o Exterior”.

Por essas e tantas outras, Fernando Henrique Cardoso tem toda razão de estar muito envergonhado. Só não está mais pelo alto consumo de óleo de peroba para manter lustrada sua faccia de intelectual.

 

 

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , , , , | Deixe um comentário

JUIZ-DEUS TEM PRECEDENTES

A esculhambação do judiciário e das “forças da ordem” no Brasil vem de longe. Qualquer historiador pode listar milhares – literalmente – de casos onde o “sabe com quem tá falando?” prevalece sobre qualquer coisa, e a polícia e o judiciário são mestres nisso.

O último exemplo foi o do juiz-deus de meia pataca, o meretríssimo Dr. João Carlos de Souza Correa, que foi parado pela agente de trânsito Luciana Trombino por dirigir, sem carteira, um modestíssimo Land-Rover sem placa e mostrar sinais de haver tomado umas e outras.

Mas o Bessa, que tem uma memória de cão – ajudado pelas irmãs e sobrinhos, é claro, lembrou de caso manauara. Sim, lá na Paris dos Trópicos acontece de tudo. E mais ainda no  no Beco da Bosta, do bairro de Aparecida, que como diz o Babá é um microcosmo, um indivíduo apelidado de Cachorrão já fazia das coisas há muito tempo. Apelido que merecia ser herdado pelo indigitado meretríssimo.

Vejam só a crônica do Bessa no TaquiPrati:

O JUIZ E A FARINHA DO UARINI
José Ribamar Bessa Freire
16/11/2014 – Diário do Amazonas

 

“Por favor, pare agora, senhor Juiz, pare agora”
Wanderlea
Quando tomei conhecimento da lambança do juiz que foi flagrado numa blitz no Rio dirigindo sem habilitação um carro sem placa e sem registro de licenciamento, telefonei para minhas irmãs em Manaus. São elas as narradoras oniscientes que me abastecem com as histórias do Bairro de Aparecida, em cujos becos cabe todo o universo. Tudo o que acontece e ainda vai acontecer no planeta, já ocorreu no Beco da Bosta, onde se vive um tempo mítico. O Beco contém o mundo e o infinito. Essa é que é a verdade.
– Maninha, como é o nome do teu ex-vizinho, marido da dona Albertina, que mandou prender a Leonor por causa da farinha do Uarini?
– “Cachorrão” era o apelido. Já morreu faz tempo. Esqueci o nome dele, mas da história eu lembro – me disse a Dile.
Consultei as outras irmãs. Nada. Nenhuma delas – são 9 – sabia o nome do “Cachorrão”. Nem a Helena que tem memória de elefante. O cara era tão bostífero, mas tão bostífero que elas apagaram seu nome da memória. Nos anos 1950, ele serviu o Exército aquartelado no 27° Batalhão de Caçadores, hoje prédio do Colégio Militar. Lá dentro era um reles soldado e se borrava todo diante do grito do sargento, mas lá fora se sentia “o general”, berrava e mugia, humilhava e agredia mulher, filhos e vizinhos civis.
Quando deu baixa, “Cachorrão” manteve o poder, porque trocou a farda verde-oliva pelo uniforme cáqui da Guarda Municipal de Parques e Jardins Com ela, vestido e investido de autoridade, continuou semeando terror nas ruas, vielas e becos do bairro, amparado em postura municipal que conferia atribuições aos guardinhas para “manter a ordem pública, impedir a prática de delitos e defender o patrimônio municipal”.
Teste da farinha 
Uma dessas posturas proibiu “o teste da farinha” que a gente aprende desde criancinha quando ainda está engatinhando. Consiste em saborear a farinha, antes da compra, para ver se está bem torrada e crocante. É assim: a gente mete a mão no paneiro, enche-a de farinha e, de longe, lança tudo na boca com tal destreza que os grãos voam pelos ares, mas nenhum se perde. São todos abocanhados. Se nas Olimpíadas houvesse a modalidade de lançamento de farinha à distância, os amazonenses ganhariam todas, como os quenianos na Corrida Internacional de São Silvestre.
Por que proibir costume tão enraizado em nossa cultura que deixa embasbacado os que vêm de fora? Por puro preconceito. Acontece que na época Manaus detinha o maior índice de tuberculose no país, registrando 98,6 casos por 100 mil habitantes. Além disso, os leprosários do Aleixo e de Paricatuba acolhiam número crescente de portadores de hanseníase. Aí, um médico vindo de São Paulo se invocou que a farinha era crocante porque leprosos deixavam casquinhas dentro do paneiro. Fez campanha para proibir a prática.
Esse médico incompetente, traumatologista e ortopedista, não entendia chongas de epidemiologia e de saúde pública, nem muito menos de mandioca, achava que os bacilos de Hansen e de Koch eram transmitidos através da farinha manuseada, especialmente aquela fabricada no município de Uarini, feita de mandioca puba amarela, com caroços duros e uniformes. Convenceu os vereadores.
O truculento prefeito Stênio Neves assinou portaria em 1955, estabelecendo multas para vendedores cujos fregueses usassem a mão para provar farinha. O parágrafo “d” da portaria obrigava o uso de caneco nos mercados, feiras e bancas avulsas para evitar qualquer contato do produto com a pele do comprador. Para isso se baseou na Lei n° 132 de 15 de Junho de 1949 que criou a Guarda Municipal. Mas ninguém queria usar caneco.
Sobrou para a Leonor que tinha banca em frente à taberna do Armindo, na época modesta birosca de um só pavimento, mas hoje um arranha-céu de dois andares, quase uma multinacional da alimentação com o nome de Boteko da Fundação. É o nosso “Empire Shit Building”, uma porta dando pra pracinha e duas para o beco, que dominaria toda a 5ª Avenida, se Aparecida fosse Manhattan.
Mão no paneiro
Foi aí que o Cachorrão decidiu comer farofa de jabá. Já tinha em casa cebola, alho, salsinha, tomate e pimenta murupi, só faltava a farinha do Uarini. Vestido com a farda de guardinha, ele – que devia zelar pelo cumprimento da lei – transgrediu. Meteu a mão no paneiro, Leonor protestou:
– Assim me prejudica. Use o caneco, por favor!
Cachorrão invocou sua condição de agente da lei, Leonor obtemperou que ele não era Deus. Depois de intenso bate-boca, ela recebeu voz de prisão por desacato à autoridade. O Petel saiu em defesa da cunhada, por quem nutria amor platônico. Saíram na porrada. Foram levados para a Chefatura de Polícia, no antigo casarão da Marechal Deodoro. O Delegado confirmou a prisão e estipulou fiança de três salários mínimos, na época 2.400 cruzeiros, num total de 7.200. A Teca e a Céu, apaixonada pelo Petel, fizeram uma “vaquinha” e libertaram os dois das garras do arbítrio.
Mais de meio século depois, o juiz João Carlos de Souza Correa foi parado em blitz da Lei Seca, em 2011, na Zona Sul do Rio, completamente irregular. A agente de trânsito Luciana Tamburini, como manda a lei, determinou que o Land Rover sem placa fosse rebocado. O juiz deu voz de prisão a ela, que recorreu à Justiça. Na última quarta-feira, finalmente, a 14ª Câmara do Tribunal, composta por coleguinhas do juiz, por unanimidade e corporativamente, manteve a condenação que obriga a agente de trânsito a pagar R$ 5 mil ao magistrado sem carteira.
Os internautas fizeram uma “vaquinha”, mas Luciana vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e “até ao tribunal de Deus”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu o afastamento imediato do juiz ao Conselho Nacional de Justiça. Trata-se de um caso emblemático. Se as outras instâncias mantiverem a decisão, o Judiciário vai ficar isolado e vai ter que meter o Brasil inteiro na cadeia, porque estamos todos indignados.
Depois, os black-blocks que saem às ruas são considerados desordeiros, quando a ordem já foi subvertida justamente por aqueles que deviam por ela zelar. Temos orgulho de Luciana e vergonha do juiz. Se não tivermos coragem de gritar isso, é porque merecemos o poder judiciário que temos.
Eu não disse que qualquer evento em qualquer parte do mundo já aconteceu no Bairro de Aparecida? Meu sobrinhoSérgio, que não me deixa mentir, fotografou o cenário e o local do crime. Esse juiz e o Cachorrão são farinha do mesmo saco.
——–
A única questão que sobra da crônica. Por quê cargas d’água a Teca e a Céu fizeram vaquinha pra soltar os dois. Deviam soltar só o Petel, Babá.
Investigue, please….
Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , , | Deixe um comentário

O QUE FEDE E CHEIRA NA OPINIÃO DO BILL WAACK E DO MERVAL PEARTREE

Guaman Esse Bessa não perde a deixa. Vejam só, atrasou a publicação de um texto sobe Guamán Poma de Ayala (aguardem, aguardem…) para nos divertir com as macaquices do Bill Waack e do Merdal (ops, Merval, desculpem) Peartree in The Enchanted Kingdom of Globo News.

 

Taquiprati

GLOBO NEWS: NEM FEDE NEM CHEIRA
José Ribamar Bessa Freire
02/11/2014 – Diário do Amazonas

O que a Globo News têm a ver com o Beco da Bosta, no Bairro de Aparecida, em Manaus? Qual o papel dos comentaristas William Waack e Merval Pereira nessa história?

A chave do enigma está na frase:

– Vem, Pet, vem!

Esta frase, que estava submersa em algum desvão secreto da memória, me persegue há dias. Ela emergiu da infância longínqua, de uma época em que qualquer casa do beco tinha um quaradouro feito de ripa localizado em espaço ensolarado no fundo do quintal. Sobre um deles, nossa vizinha Leonor estendia diariamente o lençol e a rede mijada do Joreca, seu filho, já ensaboada, esfregada e enxaguada. Mas antes cumpria um ritual enunciando uma frase ouvida por toda a vizinhança e que agora, sessenta anos depois,ainda martela meu juízo:

– Vem, Pet, vem!

Era assim, com voz lânguida, quase gemendo, que ela chamava seu cunhado Manuel Camilo, o Petel. Ele ia. Atendia a cunhadinha. Ajudava a estender o lençol para quarar. Ela segurava uma ponta, ele a outra, trocavam olhares ardentes e apaixonados, embora nada tenha rolado entre os dois, não por falta de vontade dele – nem dela, jurava dona Alvina, a tacacazeira – mas porque Leonor, virtuosa, não trairia o marido, embora fosse a única pessoa com intimidade para chamar o Petel de Pet. Nem dona Geraldina, a mãe do dito cujo, ousava tanto.

Enquanto deixamos o lençol no quaradouro para clarear, vamos em frente. Eis o que eu queria dizer: na mídia, tem muito comentarista que trata certas instituições distantes com a mesma intimidade dispensada por Leonor ao Petel. Foi ouvindo dois deles na Globo News – William Waack e Merval Pereira – que a frase da Leonor sepultada no fundo do poço da memória começou a me perseguir. O que disseram eles?

Continue lendo

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , | Deixe um comentário

A ILUSÃO DOS VIVOS

Aldísio Filgueiras, meu irmão, grande poeta de Manaus e da Amazônia, publicou hoje, no jornal Em Tempo, de Manaus, este poema magnífico.

aldizio280

Viva o poeta, que sabe dizer o que sentimos e não conseguimos expressar.

Publicado em Sem categoria | Com a tag , | 1 Comentário

INDIOS, MEIO-AMBIENTE E CULTURA E O TRATAMENTO DELES NA CAMPANHA: DESAFIOS

Meu amigo Bessa, que marinou no primeiro turno, publicou antes da eleição mais uma de suas colunas nas quais o dito latino é aplicado com justiça e precisão: ridendo castigat mores.

E, antes de transcrever a coluna, alguns primeiríssimos comentários meus depois de votar, roer as unhas na apuração e comemorar, com amigos, a vitória.

Algumas pautas foram ignoradas ou maltratadas na campanha. Meio-ambiente, índios e cultura.

São assuntos que, se não forem tratados com seriedade no próximo governo, podem trazer consequências ruins para a administração Dilma, para o PT e, principalmente para o futuro do país.

Nem vou me deter muito aqui nos dois primeiros temas, que o Bessa trata com mais competência que eu, e que minha filha Galiana, ecologista militante, fica de olho para que eu não escorregue no assunto.

Mas aproveito duas palavrinhas sobre a questão da cultura.

A primeira observação é sobre o uso e abuso de artistas (e “famosos” em geral, como jogadores de futebol e outras personalidades) nas campanhas. Até entendo que isso tenha seu efeito na atração de determinados segmentos de eleitores. Até aí, tudo bem.

Mas fico preocupado, e triste, quando se outorga a essas personalidades uma importância digamos, conceitual, na questão cultural. E, principalmente, quando se tenta ligar esses personagens a determinadas opções políticas. Acho que todos podem se manifestar como cidadãos, e se as pessoas ganham certa notortiedade por conta de suas profissões, tudo ok.

Mas não se pode misturar as estações.

Na última quinta-feira fui assistir a um fantástico espetáculo do Trio Corrente com Paquito D’Rivera, o músico cubano. Ora, o Paquito é ferozmente anti-castrista. Disse, em entrevista, que seu colega Chucho Valdez – que, com ele e Arturo Sandoval constituíam o lendário Trio Irakere – não tinha culhões para ser contra Fidel. Paquito e Sandoval já saíram de Cuba faz tempo. Chucho, aliás, vive na Espanha, mas não rompeu com o regime.

E, para mim, duas coisas são claras: todos são músicos geniais e curto o trabalho deles pelo que fazem, não pelas atitudes políticas que tomam. E recuso – como alguns cubanófilos – a qualificar Paquito e Sandoval de “gusanos” e acusá-los de não serem patrióticos. Nada disso. Como cidadãos, podem expressar suas posições políticas sem que isso afete o que penso ou deixo de pensar da música deles.

O mesmo posso dizer de alguns casos brasileiros. Por exemplo, considero o Chico Buarque um grande compositor em sua fase inicial. Acho que é um romancista medíocre e supervalorizado. E não mudo minhas opinião sobre sua obra pelo fato dele ter apoiado a mesma candidata que apoiei e fiz campanha nessas eleições, a vitoriosa Dilma Roussef.

Votei nos candidatos do PT nessas eleições apesar de sérias restrições à política cultural dos dois governos do Lula, e de problemas que considero não resolvidos neste primeiro mandato da Dilma. Escreverei mais adiante com mais vagas sobre o assunto. Mas, com todas minhas restrições à política cultura, votei no Lula e na Dilma por conta da posição que mostram, na prática, sobre as grandes questões sociais do país.

Votei porque não voto simplesmente pelos meus interesses. Voto pelo que considero melhor para o país, sempre crítico e militante.

E, sem mais delongas, à crônica do Bessa. (Babá, desculpe pelos meus pitacos prévios).

Taquiprati

A MÃE DE PEZÃO, DILMÉCIO E OS ÍNDIOS
José Ribamar Bessa Freire
26/10/2014 – Diário do Amazonas

Depois do último debate chocho, pergunto sem querer xingar: será que Aécio tem mãe? E Dilma tem mãe? Eles têm mãe? Viva, quero dizer. Sei lá! Só sei que quem tem mãe vivinha da silva é o Pezão, governador do Rio (PMDB vixe!) que quer se reeleger, tanto que apoia os dois candidatos a presidente. Não emprestou, porém, a nenhum dos dois sua mãe, capaz de decidir a eleição. Dona Ercy de Souza, 84 anos, mulher simples do interior, curso primário incompleto, vestida modestamente, foi a estrela da propaganda eleitoral na tv e no rádio. Falou sobre os valores com os quais criou o filho:

“Humilde, humildade, sempre pisar no chão. Humildade é tudo na vida, sempre falo para ele. Nunca deixar nada subir à cabeça porque tudo passa. Você tem que ser sempre o que você é. Meu filho, cuida das pessoas como eu cuidei de ti”.

Este depoimento, repetido à exaustão no horário eleitoral, me deixa arrepiadinho (passa a mão no meu braço, leitora, espia só os cabelinhos todos em pé). Com voz mansa, boca ligeiramente torta e o chiado do sul fluminense – humildche, humildadche – ela nos traz uma verdade para esse mundo de mentira. Eu sei, eu sei, a ingenuidade não é boa conselheira, a marquetagem é sempre falsa, mas o depoimento é uma coisa, o uso dele é outra. A marquetagem vê em mamãe Pezona uma máquina de votos; para nós, ela tem outra dimensão, é mãe de verdade, como a da gente: fofinha, luminosa, sábia. Linda!

No primeiro turno, convencido e entusiasmado, votei em Tarcisio (PSOL) para governador. Agora, sem opção, ia anular, mas dona Ercy me convenceu a votar nela – humildche. Quem saiu de um útero desse calibre não pode ser cem por cento efedêpê, ainda mais enfrentando o trio da sujeira – Crivela (vixe), Garotinho (vixe) e Lindinho (vixe). É mais fácil fazer oposição a um vixe do que a três vixe-vixe-vixe. Crivella, além disso, ameaça os povos do terreiro e Lindinho é declaradamente contra os índios.

Remembrancer

– Porra, Babá, não enche o saco, não faz ponte, o que é que a mãe do Big Foot tem a ver com os índios? – pergunta Chachá, uma amiga desbocada de Manaus que não gosta da temática indígena.

Pois é, menina, concordo, quem escreve ou dá aulas deve puxar e não encher o saco dos outros. No semestre passado, caminhava eu pelo corredor da universidade e ouvi sem querer a conversa de duas alunas à minha frente. Uma delas perguntou com quem a outra teria aula.

– Com aquele chato monotemático que só fala de índio, índio, índio.

O chato era eu. Quando me viu, empalideceu com receio de represália, improvável aliás, pois ela tem razão. Sou professor há meio século, já ministrei disciplinas que até o capiroto duvida. Daria aula de química inorgânica se pudesse acrescentar um tópico: “a classificação Guarani do fósforo, cloro e oxigênio”. Ministraria a disciplina Estruturas no Curso de Engenharia se o professor dela, Gilberto Moraes, me orientasse e se a ementa contemplasse “a visão dos Tuyuka sobre os orifícios retangulares em vigas de concreto armado na construção das modernas malocas”.

A sociedade brasileira é treinada – eu diria adestrada e amestrada – para apagar os índios do seu horizonte e invisibilizá-los. Quem anda na contramão é, portanto, um chato, mas esse talvez seja nosso destino, como diz Peter Burke em “O mundo como Teatro: estudos de antropologia histórica”. Historiadores são guardiães de fatos incômodos, de esqueletos no armário da memória social, como aquele funcionário na Inglaterra denominado de remembrancer (recordador), na verdade um coletor de impostos, cujo trabalho consistia em recordar às pessoas aquilo que elas gostariam de esquecer.
Num poema em que define o perfil do historiador, Carlos Drummond diz que ele “veio para contar o que não faz jus a ser glorificado”, por isso “é importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel”. Rancoroso não no sentido de vingativo, mas com conotação positiva de ferido, ofendido, dolorido.

O erro de Churchill

Quando insisto na importância das culturas e línguas indígenas para o país, tema ausente até nas perguntas dos indecisos no debate desta sexta, há quem fique incomodado. Mas a questão indígena e a ambiental não foram contempladas nesta campanha. Levantamento realizado pela Folha de SP mostra que apenas 12% do espaço dos programas no horário eleitoral discutiram propostas, nenhuma delas sobre índios. Podiam substituir um minutinho dos xingamentos para falar ao Brasil sobre a situação de quem está aqui há milênios.

Aliás, parece que finalmente não cometeram o erro de Churchill na Segunda Guerra Mundial. Vicente Reis, colunista do Jornal do Commércio de Manaus, assinava na época artigos inflamados com conselhos aos generais americanos e ingleses. Um dia ousou escrever: “Se Winston Churchill, primeiro ministro britânico, tivesse seguido as minhas recomendações da semana passada, Londres não teria sido bombardeada pelos alemães”.

Bem feito! Quem manda o Churchill não ler, na época, o jornal de maior tiragem de Manaus! Dilma e Aécio não cometeram tal erro. Na última hora, embora ausente da propaganda eleitoral, os índios mereceram duas postagens nas redes sociais. Uma de Aécio propondo a “ampliação do diálogo com as comunidades indígenas para criar uma agenda de prioridades”. Ou seja, algo tão genérico formulado por quem não tem o que dizer e quer enrolar, dando pequena satisfação aos eleitores de Marina.

A outra postagem foi uma Carta aos Povos Indígenas do Brasil, de Dilma, garantindo pelo menos que “nada em nossa Constituição será alterado com relação aos direitos dos povos indígenas”. Vamos cobrar. No entanto, ela justifica o engavetamento dos processos de demarcação de terras indígenas em seu governo por se tratar de “desafios na esfera jurídica”. Sabemos que se trata de uma questão política. A tal “base aliada” engessa Dilma, que repete na sua Carta o que a senadora Kátia Abreu, para quem ela pediu votos, proclama: índio não precisa de terra, mas de assistência social.

Amigos argumentam que não posso colocar os direitos dos índios acima dos interesses do Brasil. No pescoço francês, gaivota! Quando se fala em interesse nacional excluindo os índios é porque tem interesses privados escusos por baixo dos panos. Esse papo a gente ouve desde Thomé de Souza, Mem de Sá e Duarte da Costa. O interesse nacional implica línguas e culturas indígenas. A obrigação constitucional do Estado é garantir esses direitos, não apenas para reparar injustiças contra “coitadinhos”, mas para incorporar seus saberes e experiências na construção do Brasil moderno.

O ex-BBB Serginho, com foto no Instagram, diz que não fala com índio: “Tenho fobia de índio e de palhaço”. Esse pobre coitado é fruto do adestramento que lamentavelmente foi reforçado nesta campanha eleitoral, alimentado por omissão de marqueteiros e parafernália partidária. Nos debates, Dilma e Aécio nem sempre falaram como estadistas, mas em defesa de interesses empresariais privados. Os dois, embora se comportem como tal, não são ex-BBB. Deviam aprender com dona Ercy: humildsche. Domingo, Dilma 13 para presidente, sem entusiasmo. Para governador, voto com Dona Ercy, mas com uma pulga atrás da orelha.

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , | 1 Comentário

MARINADA DE TUCANO

Ingredientes:

1 Tucano, devidamente desplumado, destrinchado e desossado

Vinagre

Alho

Pimenta do reino e sal à vontade.

Cubra as postas de tucano depois de lavadas e limpas com bastante limão. Cubra com um plástico e deixe na geladeira pelo menos por 45 dias.

Ao retirar, não se assuste com o cheiro de “Eau d’Alkmin”, pois a marinada evitou que o Ramphastus ambiguus swainsonii tucano desbicado – O Tucanão –  apodrecesse na geladeira mesmo.

Asse em forno lento, muito lento

NÃO FICA PARECIDO COM PATO

NÃO DÊ PARA O GATINHO NEM PARA O TOTÓ

JOGUE NA LIXEIRA DIRETO

No lixão, o Coragyps Stratus, conhecido como urubu,

O reciclador final de tucanos assados.

O reciclador final de tucanos assados.

promove a reciclagem final.

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , | Deixe um comentário

Os sapatos, piar fino e falar grosso…

A frase do Chico Buarque: “Agora o Brasil não fala fino com os EUA e grosso com a Bolívia” é um dos “memes” recorrentes da atual campanha presidencial.

Lembrei, no caso, do então Chanceler Celso Lafer, que foi obrigado a tirar os sapatos ao passar pela imigração em Miami, quando foi tratar, em 2002 (último ano do governo FHC), da imposição de sobretaxas aos produtos siderúrgicos brasileiros exportados para aquele país.

Lafer reclamou, mas submeteu-se ao vexame. E, o que é pior, não retaliou quando da visita de funcionários dos EUA ao Brasil.

A justificativa do Departamento de Estado foi de que eles não controlavam a segurança dos aeroportos. No entanto, os chanceleres de certos países não foram submetidos ao vexame. E não porque fossem mais aliados dos EUA do que o Brasil era na ocasião. Mas, sim, porque eram economias robustas.

O que o Brasil não era.

fhc clinto

A questão das sobretaxas ao aço era claramente uma violência contra a economia brasileira. Não teve papo de acordos bilaterais sobre o assunto, que só foi resolvido bem mais tarde no âmbito da OMC, que decidiu em favor do Brasil e dos demais países que secundaram a reclamação brasileira.

Certamente não foi um caso tão grave quanto a espionagem denunciada mais tarde pelo Snowden, que fez a Presidenta Dilma cancelar a visita de Estado que faria a Washington. Mas foi uma violência contra os tratados que regulam os direitos recíprocos dos diplomatas.

E o Chanceler é o representante maior do Estado brasileiro no exterior, sobrepujado tão somente pelo próprio Presidente da República.

lafer sapatos 2

Celso Lafer fez muxoxo e reclamou junto ao subsecretário de Estado dos EUA em uma recepção a que este compareceu na Embaixada Brasileira em Washington. O embaixador era o prócer tucano Rubens Barbosa, cotado como futuro chanceler em uma eventual e remota vitória do Aécio.

Não consta nem que tivesse havido uma reclamação formal da Embaixada.

Ficou naquele papo de coquetel: “Pô, não deviam me tratar assim”.

Celso Lafer teve que ficar descalço três vezes nessa visita. Fez cara feia, mas ficou.

Certo mesmo era revistar a Condoleeza Rice na sua visita seguinte ao nosso país. Mas, como somos cavalheiros e simpáticos, engolimos a ofensa.

Ao que conste, nenhum de nossos chanceleres – Celso Amorim, Antônio Patriota e Luís Alberto Figueiredo Machado – tenham tirados os sapatos quando visitaram a gringolândia.

 

Publicado em Sem categoria | Com a tag , | Deixe um comentário

Surdez, voto nulo e brigas por conta da eleição

Mais um post do Bessa no Taquiprati, com alguns tópicos muito interessantes.

Começando por narrar uma anedota de campanhas passadas (1958, no Amazonas), quando um irmão matou outro por torcerem por candidatos diferentes (os dois bêbados, é claro), o Bessa aborda vários temas importantes.

Primeiro, o ódio que anda grassando as ditas redes sociais, com ofensas de um lado e do outro. Eu, já disse, não brigo com meu amigos por conta de política. Quem me ofende por conta da eleição, pro princípio declara que não é meu amigo, então, que se…. Gozação vale, ênfase na defesa dos candidatos vale. Mas a primazia é o fato de vivermos um momento importante na vida do país, a oportunidade de, através do voto. definirmos rumos e alternativas.

Mas o Bessa chama atenção para outro fato: nenhum dos candidatos se lembra de que os surdos são eleitores e ninguém traduz os programas e debates pelo LIBRAS – a língua brasileira de sinais. Felizmente os cegos não sofrem com esse problema em particular. E os cegos e deficientes visuais batalham duro por seus direitos. Outro dia, no blog que dedico especificamente às questões do livro e da leitura, publiquei um posto sobre o assunto. Quem quiser, pode ver aqui.

Sem mais delongas, o belo post do José Bessa, cujo link está acima, mas que faço sempre questão de reproduzir.

Taquiprati

MEU SOBRINHO QUER VOTAR NULO
José Ribamar Bessa Freire
19/10/2014 – Diário do Amazonas

E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando /destas estórias que narro, /

não me importo: vou contente / toscamente improvisando / na minha frauta de barro.

Luiz Bacellar (1928-2012), poeta do Bairro de Aparecida

Caim e Abel na Barelândia. Com oito facadas, uma delas no coração, Chico Cururu matou o próprio irmão conhecido como Mala Velha. O motivo alegado: o voto diferente. Foi em Manaus. Mas podia ser em qualquer outra cidade, porque o Brasil está rachado ao meio, com famílias estilhaçadas e amizades desfeitas. As pesquisas indicam empate entre os candidatos a presidente. Eleitor de Dilma briga com o de Aécio, ambos esquartejam os indecisos e xingam os decididos a anular. Algumas vezes, chegam às vias de fato, como já ocorreu em eleições passadas.

Cidade Flutuante, favelão sobre troncos de árvores e palafitas, em uma cidade que sempre deu costas para o rio. Foi “removida” por Arthur Reis, o primeiro governador nomeado pela ditadura, e seus moradores jogados para os confins da cidade. Participei de um documentário em Super-Oito sobre isso.

A data, não esqueço. Era aniversário de minha irmã: 1° de outubro de 1962. Cururu, peixeiro ambulante, percorria as ruas da cidade com um tabuleiro vendendo seu peixe. Mala Velha, o caçula, trabalhava na Serraria Hore, Bairro de Aparecida.   Os dois nem se falavam. Naquela noite, o acaso os reuniu no lupanar Curral das Éguas, também conhecido poeticamente como Flor de Abacate, situado na ponte Aroeira, na Cidade Flutuante – uma favela aquática sobre troncos com pardieiros cobertos de palha ou zinco. Cada um no seu canto. Beberam, dançaram até que Mala Velha, completamente chirrado, cantou o jingle do candidato do PTB:

– Salve Plínio, grande líder trabalhista! / O teu nome por si só é uma bandeira! / Consagrado já és como estadista, / no conceito da gente brasileeeeeira!

O que mais irritou Chico Cururu, cabo eleitoral de Paulo Neri (UDN – vixe, vixe), foi a adesão das meninas em trajes menores cantando ali, num coral improvisado. Em depoimento à Polícia, ele declarou ter sido humilhante ouvir Lizete, sua preferida, regida pelo irmão, entoar com voz de mezzo-soprano o final do jingle divulgado pelas rádios Baré e Rio-Mar, repleto de exclamações:

– Nosso povo jubiloso te saúda! / Com firmeza, energia e valor! / Porque é Plínio, Plínio mesmo e não muda! / Novamente tu serás governadooooor!

Dois Irmãos

Uma afronta. Bastante mamado e cheio da troaca, Cururu puxou a faca de escamar peixe, amoladinha, partiu pra cima e pinicou o corpo do irmão: pescoço, baço, coração. Dessa forma, acabou uma briga iniciada oito anos antes, em 1954, quando Mala Velha, petebista doente, debochara do candidato a governador Severiano Nunes (UDN), interpretando a sigla SNM – Serviço Nacional da Malária afixada nas casas fumigadas com inseticida como sendo Severiano Nunca Mais. Foi aí que tudo começou.

A eleição de 1954 quem ganhou foi Plínio Coelho – Pata Choca para os adversários, Ganso do Capitólio para os correligionários – que criou a empresa estatal de ônibus Transportamazon e arrumou para Mala Velha um emprego de motorista, de onde seria demitido por Gilberto Mestrinho no governo seguinte. Em 1962, Plínio   se candidata outra vez contra a mesma UDN do Paulo Pinto Nery, acendendo as esperanças do velho cabo eleitoral e acirrando a divisão entre os irmãos.

Reza a lenda que a última palavra da vítima, estrebuchando numa poça de sangue, foi sussurrar a letra do jingle:

– … porque é Prinho, Prinho mesmo e não muda…

Ele não falava Plínio. Cururu, olhando o irmão que agonizava, teria declarado cheio de ódio, segundo testemunhas oculares e auriculares:

– Tóma-te! Teu voto o Prinho não vai ter!

Não teve. Mala Velha morreu ali mesmo, dois dias antes da eleição.

Os jornais da época tentaram despolitizar a questão, alegando agravantes para o crime, já que os irmãos estariam embeiçados pela Leonor, um piteuzinho, que vendia verduras no Beco da Bosta. Invencionices. A história foi como contei, está aí o advogado Felix Valois, na época membro da Cruzadinha Infantil, que não me deixa mentir. Ou deixa?
Eis o que eu queria dizer: meio século depois, o Brasil continua infestado por cururus e malas velhas, que agem nas redes sociais e se esfaqueiam virtualmente. Patrulham o voto dos outros, como se fossem donos da verdade. Não argumentam: ofendem. Não escutam: xingam. Seguem o exemplo dos candidatos. Outro dia fui chamado de idiota no face por alguém que não conheço, só porque destaquei que Marina Silva defendia os índios e a floresta.

As patrulhas

Minha família não é diferente das demais, mas felizmente contivemos o ímpeto eleitoral dos cururus e malas velhas. A gente se ama, briga, fofoca e todo mundo se mete na vida de todo mundo. Funciona como uma tribo. As irmãs votam em Dilma, primos e alguns sobrinhos em Áecio, com tiroteios nas reuniões familiares que borbulham e fervilham. No primeiro turno, Marina teve apenas meu voto solitário. Minto. Uma prima que conhece a vida no seringal e os índios Katukina também votou nela. Houve porém um silêncio generalizado, não sei se respeitoso ou reprovador.

“Inimigos em comum” – esse foi o título de matéria da Folha de SP (17/10) assinada por Lígia Mesquita, abordando a ação dos “guerrilheiros do facebook”, o patrulhamento político, os casos de brigas entre amigos e parentes, o tom agressivo, as mentiras e o rompimento e bloqueio de amizades.

Tudo isso angustiou um sobrinho querido, que é surdo. A propaganda política não foi traduzida para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), embora em 2005 tenha sido reconhecida oficialmente no Brasil, onde segundo a Organização Mundial de Saúde existem 13 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência auditiva, das quais mais de 2.5 milhões são completamente surdos.

Capturar

Os candidatos se lixaram para os surdos, mas meu sobrinho ouviu melhor do que todos nós os dois últimos debates entre Dilma e Aécio, talvez porque tenha sido um debate de surdos. Desencantado com a baixaria, ele nos consultou sobre o voto nulo. Mereceu o respeito das tias, petistas doentes, e das primas, aecistas convictas. Conseguiu enfrentar o patrulhamento nas redes sociais, onde se quer ganhar no grito, com “informações” que não são checadas e “argumentos” primários que crucificam quem pensa diferente, escrotizando as relações de afeto.

Conversamos via face, o sobrinho em Manaus, eu no Rio. Respeito o voto nulo dele, mas já declarei o meu. Não voto em Aécio com entusiasmo. Agora é Dilma, 13, sem entusiasmo. Ora, direis, o TSE não computa voto pela metade. Com ou sem entusiasmo, o valor é o mesmo. Não é o que pensa a patrulha que quer, além do voto, a alma da gente. Os patrulheiros são primários. Cada vez que vejo a propaganda do Aécio, reforço meu voto em Dilma. Quando ouço certos cabos eleitorais da Dilma, me dá vontade de anular o voto. Funciona de revestrés.

O PT precisa dos votos dos eleitores, sem os quais não ganha a eleição, mas precisa da crítica dura, da pressão constante, da cobrança insistente sem a qual não governa. Quem abdica da crítica, está dizendo que concorda com as alianças e entrega Dilma de bandeja como refém da tal “base aliada”. Ai, sinceramente, não existe diferença entre as duas formas de governar.

Dilma, presidente da República, tem a caneta na mão. Teria minha alma se reconhecesse todas as terras indígenas, cujas demarcações estão engavetadas. Mas isso ela não faz. Nem sequer acena. Índios e surdos estão fora do horizonte dos dois candidatos. De qualquer forma, nenhum dos dois merece que se mate ou se morra por eles. Chega de Cururu e Mala Velha!

P.S. – Vale a pena ler três artigos publicados na Folha de SP com posições diferentes: 1) Ruy Goiaba – Opinião: o inferno são os outros; 2) Luiz Eduardo Soares – Conversa de segundo turno; 3) Maria Rita Kehl – Voto contra o retrocesso.

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , | 1 Comentário

COMO O BOLSA FAMÍLIA IMPULSIONA A ECONOMIA

O cultivo do algodão renasce no Seridó.

O cultivo do algodão renasce no Seridó.

Uma das críticas mais recorrentes aos programas de transferência de renda feitas pelos livremercadistas e liberais de variado pelame é que não “abrem a porta de saída”, que “viciam”. Além do uso do famoso adágio: “é preciso ensinar a pescar, e não dar o peixe”.

Quero, aqui, apenas dar alguns exemplos singelos de como os programas de transferência de renda ajudam, sim, a economia crescer, abrem portas de saída, estimulam o empreendedorismo e criam uma nova classe média.

A região do Seridó, que abrange áreas dos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, era famosa produtora de algodão de alta qualidade, o algodão “mocó”. Era uma produção que abastecia tecelagens de todo o país com uma matéria prima de muito boa reputação.

Com a abertura das importações – “obra prima” iniciada pelo governo Collor e aprofundada no tucanato – a importação de algodão egípcio liquidou a competitividade daquela produção, e as áreas produtoras entraram em profunda decadência. A agricultura algodoeira liquidada, as plantações resumiam-se à agricultura de subsistência, para consumo local. A região, afastada dos grandes centros, não produzia para o mercado.

A situação de miséria era eventualmente mitigada – principalmente nos momentos de seca – com as “frentes de trabalho” e a distribuição mais ou menos ampla de cestas básicas. Estas, compostas essencialmente de produtos industrializados produzidos bem longe de onde moravam os beneficiados.

Pois bem, começam a entrar os recursos dos programas federais. Primeiro, a aposentadoria rural. Um salário mínimo para os velhos. Depois, com o governo Lula, o Bolsa Família.

Começam a acontecer coisas estranhas. Muito estranhas.

Caicó, pólo regional. O comércio floresce.

Caicó, pólo regional. O comércio floresce.

Tem gente que parece achar que os que recebem a aposentadoria rural e o Bolsa Família comem, literalmente, o dinheiro.

Como papel moeda é algo muito indigesto, o que acontece é que se faz com os recursos recebidos o que sempre se fez: compram-se coisas. Principalmente comida.

O primeiro resultado, portanto, foi o renascimento da economia local de alimentos: vendas armazéns, feiras mais movimentadas.

Dinheiro circulando movimenta a roda da economia.

Os críticos não percebem que o Bolsa Família tem limites de idade para ser recebido. Os pais podem continuar, mas os jovens que saem da escola começam e sofrer outras pressões. Apesar do limite ser o total da renda familiar, o fato é que os jovens adultos tinham que, de alguma maneira, começar a trabalhar. A opção mais comum era a migração para trabalhar no “Sul Maravilha”.

Só que passaram a vislumbrar outras possibilidades.

Foi assim que o empreendedorismo local fez ressurgir a industrial algodoeira, e dentro de um sistema produtivo que nós, antropólogos, conhecemos bem: economia familiar camponesa.

Rapidamente: na economia individualizada, clássica, o trabalho deve ser remunerado aos indivíduos, que com eles se sustentam. Na economia camponesa não é assim. A unidade de produção e consumo é o resultado do trabalho de toda a família, e está voltado para a satisfação das necessidades do conjunto do núcleo familiar.

Isso leva, eventualmente, à extensão da jornada de trabalho. As flutuações sazonais podem exigir uma intensidade de trabalho enorme em determinados momentos, que podem ser seguidos por períodos “vazios”. Dependendo das circunstâncias, esses períodos são preenchidos de diversas formas: manutenção dos equipamentos, artesanato, migração para trabalho temporário, etc.

Os habitantes dessas zonas simplesmente recuperaram a atividade econômica local. Os velhos teares e fiações – improdutivos e sem condições de competir com os métodos de alta produtividade – voltaram a produzir panos de prato, mantas e redes.

E essa produção, depois de um certo tempo, era colocada em caminhões, pela própria família, que se destabocava para vender redes, mantas e panos de prato não apenas pelas cidades maiores do Nordeste, como também para o resto do Brasil.

Com o progressivo crescimento, que é incompatível com os critérios de produtividade das grandes indústrias, mas totalmente racionais dentro de uma economia camponesa, chegaram a formalizar algumas empresas de porte um pouco maior e até a exportar.

Mas era um crescimento muito desordenado, que começou inclusive a produzir danos ambientais, com o aumento do uso de cloro e de tinturas industriais, vazados sem tratamento para as bacias hidrográficas locais, que às vezes são semi-perenes.

Ainda em 2003, o Ministério do Desenvolvimento iniciou um extenso programa, denominado de ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS. Esses APLs mobilizavam não apenas os técnicos do MD, como também o Sebrae, o sistema de assistência técnica (as Emater estaduais), órgãos de financiamento (CEF e Banco do Brasil). Em casos específicos foi mobilizada também a EMBRAPA e até as federações patronais passaram a se integrar no apoio a esses programas. Os programas de apoio à agricultura familiar, do MDA tiveram papel importante nessa coordenação, assim como os Sindicatos de trabalhadores Rurais.

O resultado é muito significativo. Municípios como Jardim das Piranhas (bacia do rio do mesmo nome), no Rio Grande do Norte, em plena região do Seridó, se tornaram foco dessas ações, que repercutem em toda a região. Caicó, que é uma cidade de porte um pouco maior, concentra a movimentação bancária, por exemplo. E o comércio local floresce, é claro.

Ainda na mesma região há um APL do queijo, que ajuda na melhoria da produção de queijo de cabra, também tradicional.

A cidade de São Bento, na Paraíba, também na mesma região produtora de algodão, se transformou na maior produtora de redes do Brasil. São DOZE MILHÕES de redes produzidas anualmente. São cerca de 70 empresas formais e 300 informais. E não há desemprego na região.

São Bento, na Paraíba - 12 milhões de redes produzidas anualmente.

São Bento, na Paraíba – 12 milhões de redes produzidas anualmente.

Os velhinhos continuam recebendo a aposentadoria rural. As famílias com filhos nas escolas continuam recebendo o Bolsa Família. A renda per capita, apesar de ter crescido substancialmente, ainda é baixa, e precisa melhorar muito.

Acabaram os problemas?

Longe disso.

O desenvolvimento fez surgir novos problemas e desafios.

Na área econômica, a importação de têxteis da China – no início voltada principalmente para peças de vestuário – já está trazendo dificuldades. São peças de qualidade muito inferior, mas muito mais baratas. Os produtores locais jogam com a qualidade para manter sua fatia de mercado, e a assistência técnica procura abrir novos canais de comercialização.

Os problemas ambientais também devem ser enfrentados. Houve uma sensível diminuição do uso de cloro, mas os resíduos de tintas continuam afetando os recursos hídricos da região, e exigem ações renovadas de programas de tratamento, educação ambiental, etc.

A variedade de arranjos produtivos locais é enorme e se espalha pelo país: produção de frutas, confecções (em Goiás, por exemplo), queijos e produtos lácteos em geral, marcenaria, apicultura, produção familiar de biocombustíveis com mercado garantido pela Petrobras.

E por aí vai.

Nem tudo funciona bem, já disse. Mas o esforço de valorização desses empreendedores locais cria riqueza que é significativa a nível local, e se reflete em outras áreas da economia nacional: esse pessoal compra mais telefones, televisores, geladeiras, computadores, motos e automóveis. Financia residências no Minha Casa Minha Vida, viaja mais de ônibus e de avião (para desespero de algumas pessoas que sentem nojo ao ver aquelas pessoas calejadas pelo trabalho duro, felizes da vida viajando para fazer negócios, tirar férias, visitar os parentes).

É a mostra de como as intervenções redistributivas geram emprego, riqueza e prosperidade. Ajudam no empreendedorismo, aumentam a autoestima de quem estava antes sem perspectiva e que, com trabalho duro e graças aos programas sociais, desfruta dessa prosperidade.

E não quer perde-la.

Feira de redes

Alguns links que mostram resultados, dificuldades, vitórias e fracassos dos APL nessa região:

Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL – CURSO DE GESTÃO DE PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO EM ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS/APLs  – MARIJARA LEAL – ANÁLISE E PROPOSTA DE PROJETO PARA DINAMIZAÇÃO DO APL TÊXTIL DE JARDIM DE PIRANHAS/RN

Circuitos de fluxos sócioespaciais da indústria têxtil e impactos ambientais em Jardim de Piranhas-RN – Rosalvo Nobre Carneiro – Josiel de Alencar Guedes –

 

Portal do Algodão

Diário de Pernambuco

 

Publicado em Sem categoria | Com a tag , , , , , , , | 2 Comentários